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O grande debate

O que deve caber ao Estado e ao mercado em uma economia moderna? E a quantas anda o Brasil nessa equação?

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 8 jan 2022, 08h00

Dias atrás li um artigo provocante de Luigi Zingales, um economista que aprendi a respeitar. Zingales é um liberal. Um crítico duro da lógica dos lobbies e da captura do Estado, no que se conhece como “capitalismo de compadrio”. É também um realista. Em um trecho do artigo ele diz que “A revolução neoliberal iniciada por Reagan e Thatcher aparentemente vai terminando. A intervenção estatal à la New Deal está de volta”. A partir daí, ele faz a pergunta que também me faço: o que deve caber ao Estado e ao mercado em uma economia moderna? E a quantas anda o Brasil nessa equação? Este ano tem eleição presidencial, e talvez essas são questões que deveríamos nos fazer.

Se aquela frase de Zingales é verdadeira, então andamos na contramão. Nunca houve por aqui nada muito parecido com uma “revolução neoliberal”. Nos anos 90, privatizamos estatais, criamos uma lei de responsabilidade fiscal e ensaiamos uma reforma do Estado, cujo resultado talvez mais duradouro foi a criação das “Organizações Sociais”. Implantaram-se algumas no governo federal, entre elas o Impa, e em muitos estados (a Osesp, em São Paulo, é o melhor exemplo que conheço). No mais, nossa carga tributária foi de 26% a 32% do PIB, à época do PSDB, entre outras coisas devido à expansão de programas sociais. Houve processos importantes de modernização, mas convenhamos que passamos longe de uma revolução neoliberal.

Um novo ciclo de reformas veio a partir da grande crise de 2015/16. De novo, nenhuma revolução liberal, mas avanços importantes. Colocamos um teto na despesa pública, fizemos uma reforma trabalhista, que (pasmem) acabou com o imposto sindical, e uma reforma previdenciária, em que, talvez por milagre, fixamos uma idade mínima para as aposentadorias. Mais recentemente, o país avançou em algumas reformas setoriais, como o marco do saneamento básico, que exige competição e abre o setor de saneamento para o investimento privado, e a lei das ferrovias, que desburocratiza o setor e vem gerando um boom de novos projetos. Em nenhuma delas o Estado abre mão de controlar o jogo. O que ele faz é mudar os termos do jogo. Ajusta normas e facilita a vida de quem quer investir.

Há algum problema nisso? Trocar “concessões” por “autorizações”, nas ferrovias, e exigir leilões para as empresas que vão tratar nosso esgoto diz respeito a um debate ideológico “de fundo”, como escuto por aí, ou são apenas ajustes finos de regulação que aumentam a eficiência na oferta de serviços?

Precisamos parar com a conversa fiada de que há uma contradição insolúvel entre Estado e mercado. Mercados competitivos supõem precisamente boa regulação. Não é disso que trata nossa legislação sobre parcerias público-privadas? Por que raios alguém pagaria 70 milhões de reais por uma outorga para administrar o Parque Ibirapuera, em São Paulo, se as regras não fossem claras, se não houvesse um leilão aberto e um contrato de 35 anos para o retorno do investimento? O papel que coube ao Estado? Fixar regras. E o das empresas? Investir, competir, fazer a gestão. Qual é exatamente a contradição aí?

Existem algumas tendências no redesenho das relações entre Estado e mercado em nosso tempo. Uma delas é a crescente especialização dos governos. Eles inclinavam-se a fazer tudo. Admi­nis­tra­vam estradas e aeroportos, quando não fábricas de aviões, como a nossa Embraer, mineradoras e supermercados. Hoje descobrimos que o governo não é bom em fazer nada disso. Aeroportos com gestão privada são melhores do que os velhos terminais gerenciados pela Infraero, e isso não tem nada a ver com o “Estado abrindo mão de suas funções”. São as funções do Estado que vão se transformando. Proteger interesses difusos, criar ambiente para o desenvolvimento, garantir equidade. Essas, e não comercializar verduras ou prover serviços, são tarefas nobres do Estado.

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“Não há contradição insolúvel entre Estado e mercado”

Outra tendência é a gradativa despolitização de esferas da gestão pública. É o caso da autonomia para o Banco Central. Quem definiu bem isso foi o ministro Barroso, dizendo que instituições como o Banco Central não devem ser “submetidas a vontades políticas, mas a compromissos com a Constituição e o Estado brasileiro”. Vale o mesmo para temas como responsabilidade fiscal ou o funcionamento das agências reguladoras. Pautas que expressam valores e objetivos sociais de longo prazo. Dizem respeito a direitos, e não devem ficar à mercê do pequeno jogo político.

Outra tendência é a autorregulação. A tecnologia avança, dá poder aos indivíduos e desafia velhas instituições. Não foi assim que aconteceu com o transporte urbano? Ainda recordo da discussão sobre se era cabível deixar que carros sem o carimbo das prefeituras circulassem pelas cidades transportando pessoas. Hoje há perto de 1,1 milhão de motoristas de aplicativos, país afora, e pouca gente ainda discute sobre isso. A chamada sharing economy representa essa tendência. Ela explora recursos subutilizados, distribui benefícios de modo difuso e debita seus custos sobre indústrias obso­le­tas. A tecnologia blockchain vem na mesma direção. O Estado moderno se fez na ideia do controle exaustivo sobre diferentes esferas da vida social, mas terá de dar espaços à regulação aberta e descentralizada. Há quem se assuste com isso; há quem veja aí a melhor promessa de nossa época.

Por fim, vamos consagrando um princípio enunciado por figuras díspares como Hayek e um filósofo igualitarista como Philippe Van Parijs. Ele diz que “ninguém deve cair abaixo de um padrão mínimo de dignidade”. A intenção aqui é clara: não é mais aceitável, em nossa civilização, que pessoas vivam em situação de miséria. Penso nisso quando vejo os viadutos de São Paulo tomados por famílias. Criamos um país em que o governo recolhe 35% da riqueza, em impostos, e convive bem com 13% das pessoas abaixo da linha de extrema pobreza.

O mundo atual assiste a uma longa aproximação entre as agendas do liberalismo e da moderna social-democracia. Economias avançadas são feitas de modelos mistos. Gosto de lembrar do desafio lançado por Mario Covas, em nossa primeira eleição presidencial após a ditadura, dizendo que o Brasil precisava de um “choque de capitalismo”. Logo ele, um convicto social-democrata. Sua provocação permanece, até hoje, parada no ar.

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Vai aí o maior desafio deste ano da graça de 2022. Largar o bate-boca vazio e concentrar energias no grande debate sobre o país que desejamos. É esse o tom que deveríamos dar à disputa presidencial. Não sei se é razoável acreditar que isso vai acontecer, mas não tenho dúvidas de que seria o melhor a fazer.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 12 de janeiro de 2022, edição nº 2771

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