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O golpe do Zé Trovão

A retórica do medo, à esquerda e à direita, se tornou banal

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 24 set 2022, 08h00
FANTASIA - A tela O Grito, do norueguês Edvard Munch: no Brasil, o temor vazio de algo que não virá -
FANTASIA - A tela O Grito, do norueguês Edvard Munch: no Brasil, o temor vazio de algo que não virá – (Scanpix/Munch-Museum/.)

No mundo da fantasia política, há basicamente dois golpes em curso no país. Um deles, mais discreto, seria dado no “quartinho escuro” da Justiça Eleitoral. Alguém manipularia as totalizações de votos e arranjaria os resultados, segundo os interesses do “sistema”. O outro golpe seria dado pelo próprio presidente. Ele vem sendo alardeado desde o início do governo. De um acadêmico delirante, li que Bolsonaro fecharia o Congresso, sob o pretexto de combater facções criminosas, e que ele seria o “Chávez brasileiro”. Por óbvio, nada disso aconteceu. O último 7 de Setembro talvez tenha sido o evento mais engraçado. Anunciado por setores da imprensa como “atos golpistas”, seu grande tema, no dia seguinte, foi a palavra “imbrochável”, dita pelo presidente. O curioso dessas teorias é que ninguém sabe dizer como se daria o tal golpe. Alguns imaginam algo como aqueles cabeças de chifre, no Capitólio; outros imaginam Bolsonaro entrincheirado no palácio, agarrado à faixa presidencial, mas tudo soa um tanto bizarro. A boa notícia é que em dois ou três meses saberemos a resposta. Se o golpe acontecer, seremos já uma “abjeta ditadura”, parafraseando o ex-ministro Celso de Mello, quando o Carnaval chegar.

Sejamos claros: ninguém acredita, lá no fundo, em golpe nenhum. Para que isso efetivamente acontecesse, seria preciso que as Forças Armadas topassem rasgar a Constituição, ao custo de extrema violência, e mesmo assim com baixíssima probabilidade de sucesso. Não há nenhum sinal nessa direção, nem racionalidade alguma em uma ideia infantil como essa.

Em todos esses anos, confesso só me lembrar de uma pessoa que realmente parece ter acreditado no golpe: o Zé Trovão, o líder caminhoneiro mais bolsonarista que o Hélio Negão e Carla Zambelli misturados. Eu mesmo vi, em uma live, quando cobria a greve dos caminhoneiros, em torno do 7 de Setembro do ano passado. O vídeo mostra o Zé Trovão chateado, não acreditando que Bolsonaro tinha mandado a turma liberar as estradas e ir trabalhar. “Então não era para valer?”, ele parece dizer. “A gente faz tudo, eu vou preso, e fica tudo por isso mesmo?” O dia tinha sido tenso, as redes bolsonaristas mais radicais diziam que agora era “tudo ou nada”, Bolsonaro havia dito aquela frase famosa, de que não iria mais obedecer a ordens de um ministro do STF, os caminhões tinham furado o bloqueio da Esplanada dos Ministérios. Tudo isso talvez tenha feito o Zé Trovão achar que a virada de mesa era de verdade. Só que não. Era de mentirinha, como toda essa conversa fiada do golpe. Dias depois, já conformado, ele aceitou o argumento de que “o presidente sabia das coisas” e ia negociar lá em Brasília. Bolsonaro assinou aquela cartinha pedindo desculpas, e a vida seguiu seu curso. Só não para o Zé Trovão. Ele teve um mandado de prisão, acusado de “atentar contra a democracia”, foi parar no México, perdeu seu trabalho, dinheiro, até que resolveu voltar e se entregar à Polícia Federal. Ficou em cana por algum tempo e depois foi liberado, com direito a uma tornozeleira, e hoje anda meio esquecido, talvez com a vaga sensação, lá no fundo, de ter sido o único que acreditou.

“A retórica do medo, à esquerda e à direita, se tornou banal”

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Fantasias à parte, o fato é que as retóricas do golpe obedecem a uma lógica. Nesta semana ela se mostrou com clareza na entrevista de um opiniático cientista político americano, a que por acaso assisti na televisão. Ele diz que Bolsonaro tentará virar a mesa, que pode ter a adesão de “setores das Forças Armadas” e que, por precaução, todos deveriam votar logo no Lula. Em uma resposta, conseguiu sintetizar toda a lógica do jogo. Em primeiro lugar, o medo. Não se sabe bem o que, mas “haverá alguma coisa”; em segundo, a vacuidade: apoio de setores das Forças Armadas. Alguma informação objetiva sobre isso? Nenhuma. Apenas uma frase jogada no meio de um argumento, que do contrário não faria sentido. Percebam o padrão de irresponsabilidade: ele prevê um conflito violento dividindo as Forças Armadas brasileiras, talvez imaginando que o Brasil seja uma bana­na republic. Por último, o viés político, sem disfarce: é preciso votar no Lula. Poderia ser o contrário, não importa. O interessante é a sequência: o medo, o argumento vazio, o foco político. Retrato do tipo de debate infantil em que nos metemos.

Essas coisas me remetem a um tema fascinante desenvolvido pelo filósofo Frank Furedi, em seu How Fear Works. Ele observa como se tornou lugar-comum na política atual o discurso “eles agem como fascistas” ou a retórica do “é igual aos anos 30”, por parte de elites sob risco de perda de poder, diante de líderes populistas, de diferentes perfis. “Os adeptos da política do medo”, ele diz, “não resistem à tentação de tachar seus oponentes como fascistas.” E completa: “Isso se tornou o núcleo central da cartilha antipopulista do século XXI”. O Brasil de hoje caiu como pato nessa retórica. Muita gente ganha com isso, é evidente, mas seu maior efeito é um velho conhecido: diante do medo, é mais fácil justificar a perda de direitos, a prisão de pessoas, a volta da censura prévia e de coisas que, em outros tempos, não estaríamos dispostos a aceitar.

Dito isso, é evidente que é preciso estar atento e responder a qualquer ação antidemocrática, venha ela de onde vier. Se Bolsonaro perder e voltar a lançar suspeitas sobre as urnas eletrônicas, seria seu jus sperniandi, na linguagem jocosa do direito. E seu derradeiro tiro no pé, dado que entregaria a seus inimigos precisamente o que eles querem. Poderia haver alguma arruaça? Algum grupo de malucos ultrapassando as “quatro linhas”? A hipótese é grotesca, mas é possível imaginar que exista um bom estoque de malucos por aí. Seriam todos presos, além de complicar bastante a vida de Bolsonaro.

O que temos pela frente é nossa nona eleição presidencial. A economia apresenta sinais de melhora, e o mais importante: nossa crença na democracia deu um salto. O Datafolha mostrou que apenas 7% dos brasileiros defendem a ditadura, o menor patamar em três décadas. No plano institucional, os militares foram atendidos pelo TSE em sua sugestão de teste das urnas, e o tema praticamente desapareceu do debate político. Na algazarra digital, prossegue a arenga em torno do risco democrático, e imagino que isso será assim até 2026, se o atual presidente se reeleger. Por uma simples razão: trata-se de uma retórica eficiente. Ela cumpre papel similar ao que cumpriu o “medo do comunismo”, ou o medo de que “Lula faria do Brasil uma Venezuela”. De um lado ou de outro, a tônica dos radicais é sempre parecida: a recusa da democracia como espaço compartilhado, do pluralismo como um valor e da tolerância e do respeito como a forma, ou quem sabe a estética, da democracia.

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Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 28 de setembro de 2022, edição nº 2808

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