Assine VEJA por R$2,00/semana
Imagem Blog

Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO

Por Fernando Schüler
Continua após publicidade

A lição mais difícil

Quem se preocupa de verdade com nossa democracia deveria dar um tempo para a retórica de fim de mundo que impera na epiderme da política

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 17 set 2022, 08h00

“Quem vota no Bolsonaro não é gente”, leio de um ativista, em meio ao torvelinho de ódio que tomou conta do debate político. De outro leio que “falar em fascismo é fichinha”, e que “corremos o risco de regredir aos tempos da escravidão”. Ainda outro é mais direto: “Ou você vota no Lula, ou nos nazistas”. A opinião não parece ser apenas dessas figuras. Lula diz que as manifestações do 7 de Setembro “pareciam reunião da Ku Klux Klan”, enquanto Bolsonaro garantia que as eleições são uma luta do “bem contra o mal” e que é preciso “extirpar” aquele “tipo de gente”, casualmente seus adversários, da vida pública. Não é preciso ir muito mais longe para percebermos que passamos do ponto. A turma fica meio biruta em época eleitoral, mas a verdade é que nosso debate público se tornou uma caricatura. Passadas três décadas e meia da redemocratização, transformamos nossa democracia num inútil espetáculo de argumentos infantis misturados com ódio de gente grande.

A atual radicalização tem os ares de um velho conceito da ciência política: a distinção amigo-inimigo, feita por Carl Schmitt, o jurista alemão que se filiou ao Partido Nacional-Socialista, em 1933. É o oposto da racionalidade domesticada das democracias liberais, que resumem o debate político a um espaço delimitado, das visões sobre o país, dos adversários que competem pelo governo, e não pelo “poder”. Que usam da palavra para argumentar, ajustam opiniões e têm a grandeza de entender que o outro é apenas um adversário igualmente legítimo. É esta, em última instância, a regra operacional da democracia liberal. A lógica amigo-inimigo é o oposto. O outro é o “pestilento”, como li de um tipo esquisito em um grupo de Whats­App. É igualmente inconfiável. Ele expressa um “risco existencial”, como virou comum se escutar de tipos mais delirantes.

Para Schmitt, há um problema na natureza das democracias liberais. Ele reside justamente na sua fuga dos embates sobre os “mais altos valores” que definem a existência de um povo. Schmitt via como um problema algo que a tradição liberal sempre buscou como virtude. A política de baixa intensidade, distante das questões existenciais, focada na proteção de direitos e na definição — em geral sem a menor graça — de políticas públicas. O curioso da atual polarização brasileira é seu aspecto farsesco. Cada lado do jogo atribui ao oponente um risco existencial. A oposição antibolsonarista talvez faça isso com mais requinte. O inimigo é um risco à democracia, dado que dará um “golpe”, e inimigo da civilização, dado que é um “genocida”. O governismo não faz diferente, com suas teorias delirantes sobre os riscos do “globalismo” e da “destruição dos valores” supostamente promovida pelo progressismo. A partir daí, a guerra permanente. O exato oposto da suave ideia liberal e sua recusa à dinâmica existencial. A noção de que é preciso preservar espaços de despolitização nos terrenos da ética, da religião, da estética, cujo cultivo diz respeito aos indivíduos, e nunca ao Estado.

“A radicalização tem ares de um velho conceito: a distinção amigo-inimigo”

Continua após a publicidade

Se a retórica amigo-inimigo permanecesse apenas no plano dos grupos militantes, não me preocuparia muito. O risco é quando ela invade o universo das instituições de Estado. O terreno daqueles que detêm, na famosa frase de Weber, o “monopólio do uso legítimo da violência”. É diferente que alguém seja “cancelado” por uma horda de militantes fanatizados, como aconteceu com pessoas notáveis, que vão de J.K. Rowling ao nosso Antonio Risério, e que um órgão de Estado mande prender ou banir da internet um cidadão que subitamente se torna uma ameaça existencial à democracia a partir do juízo altamente subjetivo. Ambas as atitudes são condenáveis, mas a segunda tem o sabor schmittiano: o soberano decide o estado de exceção. E é inaceitável em uma democracia liberal.

Dias atrás li de um candidato que esta eleição não era uma discussão sobre quem iria governar, mas sobre o “regime de governo”. Exemplo perfeito do lado farsesco de nosso debate. Remete-se a um suposto conflito existencial aquilo que é apenas uma decisão sobre alternativas de governo, ambas devidamente limitadas pelo sistema de freios e contrapesos. Na prática, há duas agendas em disputa, que podemos facilmente identificar nas votações no Congresso. Coisas como o teto de gastos, a reforma da Previdência, trabalhista, a autonomia do Banco Central, o marco do saneamento ou a privatização da Eletrobras. Coisas perfeitamente não existenciais, e mesmo por isso aborrecidas, e talvez por isso distantes de nosso popularesco debate eleitoral. É evidente que as pessoas podem eleger critérios distintos para votar. Eles podem ir da predileção por uma política pública até a mera antipatia pessoal. Lula falou em “serviço de mulher”? Bolsonaro disse que era “imbrochável”? Perfeito. Mover-se por questões pueris, ou “tribalizáveis”, como me definiu um bom amigo, é um direito das pessoas e sempre fez parte da vida democrática. Coisa bem diferente é a lógica tóxica da inimizade política. A ideia de que “vamos virar uma Venezuela”, curiosamente atribuída tanto a Lula como a Bolsonaro, ou a tese superdelirante de que viraríamos uma “Alemanha dos anos 30”. Patética referência ao nazismo nos lembrando que qualquer razão argumentativa perdeu o sentido e que nos aproximamos perigosamente do fundo do poço.

Quem se preocupa de verdade com nossa democracia deveria dar um tempo para a retórica de fim de mundo que impera na epiderme da política, à esquerda e à direita. A lógica que deseduca, que serve de antessala à violência, ao baixo consenso na formulação de políticas e a perda progressiva de qualidade no debate democrático. Quem nos deu uma bela lição sobre essas coisas (pra variar) foi Barack Obama, naquele momento mais intenso do debate americano, após à vitória de Trump, em 2016. Descontraído, diante do choro e ranger de dentes de seus amigos democratas, ele assegurou não haver nada efetivamente “letal” em jogo nas eleições. Nenhuma luta de vida ou morte. Tudo se resumia, em última instância, a saber quem iria governar. Quem ganha comanda o jogo, por quatro anos, e quem perde vai para casa, esfria a cabeça e pode voltar na próxima rodada. Foi exatamente o que aconteceu naquela grande democracia. E no Brasil também. Sociais-democratas, socialistas e conservadores não estiveram no poder? E não continuamos aqui, batendo boca? A cada rodada do jogo, há frustração, de um lado, e fogos de artifício, de outro. Ao longo do tempo, porém, todos ganham. A lição é simples, mas talvez exija algo muito difícil: a renúncia a um tipo de grandeza que a democracia liberal não pode oferecer. A sabedoria de aceitar o “inteiramente outro”. De agir como o “animal doméstico”, na exata contramão de Carl Schmitt, naquilo que diz respeito ao poder, sempre limitado, sempre transitório, como deve ser, em uma grande democracia.

Continua após a publicidade

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 21 de setembro de 2022, edição nº 2807

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.