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Fernando Schüler

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A ilusão da verdade

O risco da opinião é crucial para uma sociedade livre

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Atualizado em 15 set 2023, 11h23 - Publicado em 16 set 2023, 08h00

O Brasil anda parecendo um videogame, daqueles que mudam de fase. Primeiro foi nosso Judiciário censurando documentários, blogueiros, humoristas, nos casos que estamos cansados de conhecer. Agora é o Executivo. O governo Bolsonaro já havia feito alguns ensaios, acionando a finada Lei de Segurança Nacional contra desafetos. Me lembro do Guilherme Boulos acionado por um tuíte comparando o governo à monarquia francesa, que acabou na guilhotina. Tudo perfeitamente ridículo, e inócuo. Agora é mais complicado. O atual governo criou uma “procuradoria em defesa da democracia”, e seu último alvo é o jornalista Alexandre Garcia. O motivo é um comentário do velho jornalista dizendo que “aparentemente abriram as comportas”, e pedindo uma “investigação” sobre as enchentes no Sul do país. Na minha opinião, o jornalista sugeriu uma inverdade, mas este não é o ponto. Verdades e inverdades são ditas aos borbotões, todos os dias, e seria até engraçado, aliás, se tivéssemos um comitê que, ao cair da tarde, listasse todas as mentiras ditas por políticos, jornalistas, influencers, youtubers e palpiteiros em geral. Seriam relatórios imensos, imagino, e por óbvio perfeitamente inúteis. A questão crucial é que, ao processar o jornalista por uma “inverdade”, o governo não está tratando de uma barragem, dessa ou daquela opinião, correta ou incorreta. Está afirmando uma regra: de que cabe ao governo funcionar como “tutor da verdade” na sociedade. Ao governo não bastaria informar ou rebater, o que achar que deve fazer, e aos cidadãos decidir no que acreditar. Lhe caberia mandar a polícia atrás dos errados e pecadores. Há muita gente que acredita nisso. E não me refiro aqui à montanha de fanáticos, cuja lógica é ver os inimigos queimando numa fogueira. Me refiro a pessoas de boa-fé que se perguntam: se o governo “sabe” qual é a verdade, por que ele não vai logo limpando o debate público dessa porcalhada toda?

Foi exatamente essa pergunta que esteve no nascimento da concepção moderna da liberdade de expressão. Ela foi a questão central do debate entre o grande John Locke, em seu exílio holandês, logo após publicar Carta sobre a Tolerância, e Jonas Proast, teólogo conservador de Oxford. À época, o debate envolvia um tema mais grave do que nosso atual bate-boca político. Envolvia a religião. A salvação das almas, e não se o governo é responsável por isso ou aquilo, se um presidente era “miliciano”, ou se “Dilma foi absolvida” por um tribunal. Tudo isso apareceu por aí e continuará aparecendo, todos os dias, em nossa democracia tumultuada. À época de Locke, era claro para um ortodoxo como Proast que não se devia brincar com a verdade. O próprio Cristo havia dito, no Evangelho, “obriga-os a entrar”, na casa de Deus. E era lógico que a força do Estado deveria ser usada para que os errados e mentirosos “reconsiderassem” seus pecados. Observando o Brasil de hoje, percebo como as ideias de Proast vingaram. E como as de Locke andam na contramão.

O que Locke propôs foi um caminho completamente distinto. “Cada príncipe é um ortodoxo, a seu modo”, e não há um juiz comum, em última instância, para saber “de que lado dos Alpes” se encontra a verdade. E que seria uma perfeita temeridade entregar esse poder para qualquer governo. Pelo seguinte motivo: no seu afã de nos proteger dos erros de jornalistas e críticos, quem nos protegerá dos erros do próprio governo? Do erro de um jornalista podemos nos proteger contestando sua visão. Mas e dos erros de uma “procuradoria”, com seu exército de advogados, delegados e a maquinaria do Estado? Para quem tem dúvidas sobre isso, sugiro observar as querelas nas quais o governo se intrometeu no Brasil recente. O governo anterior acionou a Polícia Federal contra um sujeito que chamou o presidente de “pequi roído”; o atual, contra o jornalista falando das barragens. Nossa Suprema Corte mandou censurar um minúsculo partido comunista por frases perfeitamente irrelevantes, no Twitter, das quais ninguém se lembra. No caso de nossa “procuradoria da democracia”, me pergunto se ela moverá ações contra todas as inverdades, ou apenas as inverdades do lado oposto ao governo? E, caso a oposição vença as eleições, manterá seu curso? Ou é a verdade que mudará de lado? Um órgão de Estado, afinal de contas, pertence a todos os cidadãos, ou a quem ganhou uma eleição? A tradição de Locke diz algo muito simples sobre essas coisas: deixem o Estado fora disso. Separem governo e opinião. Do contrário, no mundo diverso, viveremos em guerra.

“O risco da opinião é crucial para uma sociedade livre”

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“Mas então o governo deveria deixar passar uma mentira deslavada?”, me perguntaram em um debate. John Stuart Mill respondeu a essa questão com alguns argumentos. Um deles diz que é crucial para uma sociedade livre que as pessoas tomem o risco da opinião. Se criarmos a regra “você é livre para falar, desde que diga a verdade”, teremos um problema. Seria o mesmo que um CEO dizer aos funcionários: quero que vocês inovem, mas não podem errar. Quem tomaria algum risco numa situação dessas? Mill também dizia que o erro pressiona a verdade a exercitar sua vitalidade. Do contrário, ela se transforma em letra morta. Por último, há a equação universal da liberdade de expressão: que a franquia ao erro é o preço a pagar pela preservação do caminho, por vezes estreito, que conduz à verdade.

Esse debate não é nada novo. Em março de 1960, o The New York Times publicou um anúncio defendendo Martin Luther King e o movimento pelos direitos civis contendo erros factuais. Um comissário da cidade de Montgomery, L.B. Sulivan, processou o jornal e obteve uma vitória na Justiça estadual. O jornal recorreu à Suprema Corte, que reverteu por unanimidade a condenação. “O debate sobre questões públicas deve ser robusto e aberto”, escreveu o juiz William J. Brennan Jr. “Críticas veementes e erros são parte do preço que uma sociedade democrática deve pagar pela liberdade.” Em decisões posteriores, a Suprema Corte iria adiante, definindo que quem ocupa a função pública tem um especial dever de se expor à crítica, que muitas vezes é injusta. Entre outras razões, porque tem meios e força para rebater, expondo sua visão. E que isso era parte da vida republicana.

O aspecto central era evitar o que os professores Penelope Canan e George Pring chamaram de Slapp, ou “Strategic lawsuits against public participation”. Significa o seguinte: processos dirigidos contra jornalistas ou cidadãos como forma de amedrontar. Criar embaraço, humilhar, impor toda a sorte de incômodos e custos judiciais. E o decisivo: criar uma cultura de medo, induzindo os demais a jamais correrem o risco de uma opinião “errada”, sabendo que quem define isso é exatamente quem detém o poder. Isso tudo é particularmente grave quando o Slapp, a ação por constrangimento, parte do próprio governo. O governo que deveria representar a todos, e não usar da máquina do Estado para favorecer a visão daqueles que, sempre circunstancialmente, ao menos em uma República, ocupam posições de poder.

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Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 15 de setembro de 2023, edição nº 2859

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