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A arte da vida

O desejo humano: a pandemia fez urgente o que era distante

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 21 Maio 2022, 08h00

Muita gente resolveu dar um tempo durante a pandemia. Nos Estados Unidos, há muita discussão sobre o que se chamou the great resignation, ou a “grande demissão”, com mais de 47 milhões de pessoas caindo fora de seus empregos, por conta própria, apenas no ano passado. Pesquisas mostram que o número de sabáticos triplicou nos últimos quatro anos. Sabáticos podem significar muita coisa. Um amigo me disse que iria sair da “linha de produção”. Acabou virando cozinheiro em Portugal. Outro simplesmente deu uma parada para repensar as coisas. Muita gente fala na “geração burnout”. Outros dizem que é apenas uma questão de mais oportunidades. A nova economia digital amplia as chances de trabalho a distância, de alugar ou vender coisas, negociar bitcoins, inventar algum aplicativo. Moisés Naím já havia falado em uma “revolução da mobilidade”, e isso bem antes da pandemia. Agora tudo parece ter ganhado alguma velocidade.

O interessante são as histórias. Da executiva da área de saúde que jogou a toalha e foi ser fotógrafa da natureza. Acabou abrindo uma empresa de aventuras e hoje ganha três vezes mais. Do escritor que resolveu refazer a trilha de Gauguin, no Taiti, ou da jornalista indiana que sentia ter uma “história aqui dentro”, e resolveu parar um ano para escrever. Os filósofos gostam de falar da incomensurabilidade da experiência humana. Infinitos caminhos para a realização individual. A questão parece ser quanto cada um está disposto a arriscar, mesmo desconfiando que possa dar com os burros na água logo ali à frente.

“A maioria dos homens vive uma vida de desespero calado”, escreveu Henry Thoreau, nas memórias de seu exílio selvagem às margens do Lago Walden, por volta de 1845. Thoreau foi um desses tipos que decidem dar no pé. Em um 4 de julho, quando a jovem república comemorava o Dia da Independência, cruzou calmamente sua pequena Concord e se embrenhou pelos bosques, até a casa de troncos que havia construído à beira do lago. “Fui para a floresta”, diz ele, para enfrentar os “fatos essenciais da vida”. Observar as primeiras neves, no fim do outono, a estranha dança dos esquilos-vermelhos, a vida que sobrevive logo abaixo do lago congelado, em algum dia de dezembro. E a solidão. Fui lá, em um domingo alegre de primavera. Da cabana restaram apenas algumas marcas pelo chão, mas sua mística correu mundo. De algum modo, conseguiu o que queria: escapou de descobrir, às vésperas da partida, “que não havia vivido”.

Goethe também havia feito a sua virada. Ao contrário de Thoreau, já era uma celebridade aos 37 anos. Os Sofrimentos do Jovem Werther era o livro de cabeceira de boa parte da juventude alemã. Mas isso não resolvia o seu problema. Cansado da vida na corte de Weimar, enrolado com Charlotte, seu amor impossível, resolveu escapar. Durante um ano e meio, fez de Roma sua universidade. Descreve o caos do Carnaval romano, dizia ser estranho “lidar com pessoas que se dedicam apenas a aproveitar a vida”; adquire o hábito de subir nas torres, para ver em perspectiva. Mas o crucial é o sentido de ruptura. A renúncia, ainda que momentânea, da disciplina germânica do “pensar, ordenar e ditar”, em troca de uma entrega à sensualidade do olhar, das noites desregradas, da suspensão do juízo diante de uma cultura estranha e que ele estava longe de compreender inteiramente.

“O desejo humano: a pandemia fez urgente o que era distante”

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O fio condutor desses pedaços de vida reside no desejo de transcendência. Alguma coisa não ia bem na vida burocrática de Goethe em Weimar, ou no dia a dia tedioso do jovem Thoreau na pequena Concord. A partir daí, o gesto inusitado. Cada um decidiu perder alguma coisa, a seu modo, em nome de uma lufada de ar fresco e um benefício incerto no futuro. Menos um cálculo bem-feito, e mais a obediência à intuição. Ou quem sabe a uma “necessidade”. Do encontro sensual com a grande arte, no caso de Goethe; ou com natureza selvagem, no caso de Thoreau.

O ponto é observar que o que era fundamentalmente uma ideia literária no passado, entrou no ciclo da vida, e por que não da produtividade, moderna. Não como decorrência de uma súbita crise existencial. Os dados mostram que as pessoas não estão nem mais nem menos satisfeitas com o seu trabalho. Diria que são sinais da abundância. Do crescimento da renda, da longevidade e da fluidez das carreiras. E da tecnologia, que vai cada vez mais dissociando o trabalho da presença física. No início dos anos 30, Keynes escreveu seu curto e famoso artigo, “Possibilidades econômicas para nossos netos”, prevendo que a economia iria crescer de quatro a oito vezes em um século nos países avançados, e que isso levaria boa parte da humanidade à solução do “problema econômico”. Livres do fardo econômico, as pessoas poderiam voltar sua atenção à “arte da vida”. Concentrar seu tempo e energias em atividades com propósitos, em vez de correr o tempo inteiro atrás de dinheiro.

Keynes quis oferecer uma mensagem otimista, em um momento complicado da vida europeia. Pode ter errado no prazo, mas na tendência acertou. A abundância não fará cessar o desejo humano, mas lhe dará um novo alcance. Caminhamos da estabilidade ao risco, do bem-estar à ideia incerta da autorrealização. A pandemia teve um papel nisso. Ela subitamente lembrou muita gente sobre a fragilidade da vida. Fez urgente o que era distante. Como me disse um amigo algo angustiado: “Tanta gente indo embora, e eu aqui batendo cartão”. Daí a atualidade da inspiração de Goethe, Thoreau, e a quase-utopia de Keynes sobre converter a mecânica opaca da vida em um exercício autoral.

Alguns dirão que isso é apenas para os intelectuais, e que a esmagadora maioria não deixará rastro nenhum. Não acho. Como escutei de um grande professor em uma noite fria de Porto Alegre, no fim dos anos 80, “cada um tem uma vida para viver”. À época achei que era mais uma frase de efeito, dessas que os paraninfos costumam dizer em uma formatura, mas hoje percebo melhor o seu significado. Talvez seja a idade, a percepção do tempo que vai passando, a sensação de que tudo vai ganhando, quer a gente queira, ou não, um inesperado sentido de urgência.

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Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 25 de maio de 2022, edição nº 2790

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