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‘O Poço’: um filme ruim, mas que diz muito sobre a atual pandemia

Alegoria do longa de sucesso na Netflix encaixa-se como uma luva na paranoia de alguns e no oportunismo de outros em tempos de Covid-19

Por Raquel Carneiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 3 out 2024, 10h58 - Publicado em 30 mar 2020, 14h00

Pouco, muito pouco, faz sentido no filme O Poço, do espanhol Galder Gaztelu-Urrutia. O longa de horror trash, que há semanas está em destaque entre os mais vistos no Brasil na Netflix, demanda um bocado de estômago e de abstração de quem o assiste. Imagine uma prisão vertical, dividida em níveis. Em cada andar, estão confinados dois presos. No chão, um enorme buraco quadrado desenha o espaço, deixando a circulação dos detidos limitada às laterais do ambiente. Por esse enigmático buraco desce, diariamente, uma plataforma flutuante com um banquete. Os que estão nos primeiros andares comem fartamente, e o mais rápido que podem. Já os que estão nos níveis mais baixos mal conseguem encontrar ossos entre as louças quebradas. Não se sabe inicialmente quantos andares existem, mas são mais de 100. A cada mês, a dupla é levada a um andar diferente. Quanto mais abaixo, mais a vida de um deles corre o risco de ser ceifada – afinal, o corpo de um pode ser comido pelo outro que tiver maior disposição para sobreviver.

O protagonista, vivido por Ivan Massagué (de O Labirinto do Fauno), está ali por livre e espontânea vontade, para conseguir um “certificado” – motivação e prêmio sobre o qual o roteiro decide não se aprofundar. Ao tentar decifrar o sistema, ele pede aos que estão acima que comam menos, para que sobre alimento para os demais. Raramente alguém lhe dá ouvidos: afinal, se hoje tenho comida, vou me empanturrar, pois não sei como será o amanhã – é o pensamento geral.

O Poço flerta com o subgênero drama social – especialmente aquele voltado para a luta de classes. Mas é um representante fraco e raso da categoria. Suas cenas de violência são gratuitas e repugnantes, e as brechas deixadas em aberto no roteiro mais enfurecem que proporcionam uma reflexão digna, que leve o espectador a algo além quando sobem os créditos.

Mas, se há um atributo louvável no filme, é como sua confusa mensagem sobre a briga por migalhas de comida em meio à escassez opressiva se adequa aos indigestos tempos da pandemia de coronavírus. Papéis higiênicos foram os primeiros a desaparecer das prateleiras dos supermercados, assim como o álcool em gel e as máscaras das farmácias – em seguida, tinha sorte quem encontrava uma mísera caixinha de paracetamol, medicação recomendada aos que mostrem sintomas da Covid-19. Alimentos começaram a ostentar preços abusivos em mercados e distribuidores oportunistas. O cenário leva à paranoia. Quem tem dinheiro, corre para montar um estoque. E quem não tem como estocar, para usar a gíria da internet, que lute. Grandes marcas e até a ministra da agricultura, Tereza Cristina, têm ressaltado a necessidade do consumo consciente, para que não haja desabastecimento. A tarefa parece mais intrincada que a do protagonista do filme, gritando discurso parecido para as paredes até tomar medidas extremas. A esperança é que, na vida real, o resultado seja muito melhor e mais humano que na insólita distopia da Netflix.

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