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As reflexões de Almodóvar sobre a vida e a morte no belo O Quarto ao Lado

Diretor usa sua estética particular para narrar a história de uma mulher à beira da morte — e da amiga que lhe faz companhia perto do fim

Por Raquel Carneiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 18 out 2024, 11h42 - Publicado em 18 out 2024, 06h00

Ingrid (Julianne Moore) sofre de um medo atroz da morte. Para lidar com esse pavor, ela escreveu um livro sobre o tema — e, apesar de não ter cumprido a finalidade de amenizar a fobia da autora, a obra a colocou em rota direta e pessoal com o assunto. Durante uma sessão de autógrafos, Ingrid revê uma antiga conhecida que lhe dá a dura notícia: outra velha amiga, Martha (Tilda Swinton), está internada com um câncer terminal. Ingrid e Martha trabalharam juntas em uma revista na década de 1980 e perderam contato há anos. Ao visitá-la no hospital, a escritora se reaproxima da mulher solitária e se torna uma companhia inesperada em seus últimos meses de vida. Sobre essa base melancólica e aparentemente simples, o cineasta Pedro Almodóvar, 75 anos, constrói o belíssimo e intrigante drama O Quarto ao Lado (The Room Next Door, Espanha/Estados Unidos, 2024), que entra em cartaz nos cinemas na quinta-feira 24 — trazendo consigo a conquista do Leão de Ouro deste ano, prêmio máximo do Festival de Veneza e tradicional porta de entrada para o Oscar.

Primeiro longa-metragem do diretor espanhol falado em inglês, a produção coroa a fase atual e mais introspectiva de Almodóvar — em que, ao cruzar a linha dos 70, ele passou a refletir sobre suas escolhas até aqui, os males que acometem sem aviso prévio o corpo humano e a inevitável finitude da vida. Marca o início dessa etapa o soberbo Dor e Glória (2019), no qual o diretor faz autoficção ao seguir um cineasta solitário com dificuldade para trabalhar por sofrer de terríveis dores nas costas — mal que também acomete Almodóvar. A limitação física se reflete nas escolhas narrativas de O Quarto ao Lado: o banquete de cores quentes típico do cineasta se mantém, assim como seu característico gosto pelo melodrama e pelo humor ácido, mas o ritmo de acontecimentos desacelera, embalado por diálogos longos e poéticos, e poucos cenários de contornos austeros.

Ao lado de Ingrid, Martha relembra detalhes de sua vida. Da gravidez inesperada que resultou em uma relação distante entre ela e a filha. Dos tempos de correspondente de guerra, quando convivia com o horror humano diariamente. E do amante do passado que voltaria a ter se pudesse: no caso, Damian (John Turturro), que também se relacionou com Ingrid. A escritora mantém contato com o homem escondido da amiga, trama paralela que acentua sua paúra da morte: Damian é um intelectual alarmista, que vê nas mudanças climáticas e no avanço do extremismo político a última pá de cal da cova da humanidade. Quando um tratamento em fase de teste se revela ineficaz, Martha almeja a eutanásia, que é proibida nos Estados Unidos, onde a trama se desenrola. Ao contrário da amiga e do ex-namorado, ela não teme o fim, e sim a agonia da doença e a triste possibilidade de partir em solidão. Por isso, pede um favor a Ingrid — demanda que vira o fio condutor da história.

DESAFIO - Almodóvar e as atrizes: o primeiro filme do diretor espanhol em inglês
DESAFIO - Almodóvar e as atrizes: o primeiro filme do diretor espanhol em inglês (Sony Pictures/Divulgação)

O Quarto ao Lado é livremente inspirado no livro O que Você Está Enfrentando, de Sigrid Nunez, que acaba de chegar ao Brasil pela editora Instante. Na obra, a protagonista escuta relatos de dores e de superação de várias pessoas (e até de um gato). Na leitura do diretor, escancaram-se os temas que lhe são caros. O direito à liberdade de escolha, a busca por relações humanas profundas e a beleza em meio à tragédia são alguns exemplos. Ao falar da morte, Almodóvar realça a vida. Martha não tem pressa de ir embora nem se ressente do que fez ou deixou de fazer. Ao lado da amiga, com quem compartilha o gosto pela leitura e pela escrita, encontra a companhia ideal para falar do que lhe dá prazer: são abundantes nos diálogos referências literárias e cinematográficas. As duas atrizes, nada menos do que extraordinárias, fazem do roteiro uma dança leve e coreografada que parece fácil sem ser.

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Mesmo interpretando alguém debilitada, Tilda é a ponta vigorosa: ela fala, desabafa, relembra e planeja os dias que lhe restam. Julianne oferece um contraponto, com uma atuação contida, mas calorosa. Em um momento de doçura transbordante, elas assistem ao filme de 1987 Os Vivos e os Mortos, de John Huston, adaptação da obra de James Joyce. No dia em que essa cena foi filmada, Tilda chegou ao set com uma blusa de frio colorida que encantou Almodóvar — e se tornou figurino da personagem. Observando o cenário e a roupa da colega, Julianne teve uma epifania óbvia, mas significativa: “Meu Deus, eu estou em um filme do Almodóvar”, disse ela. Adentrar a visão de mundo do mestre espanhol é um privilégio — até a solidão aqui ganha cores vibrantes.

Publicado em VEJA de 18 de outubro de 2024, edição nº 2915

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