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Por Flávio Ricardo Vassoler
Um olhar para o cotidiano histórico e cultural da Rússia - mas muito além do futebol
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O 11º mandamento do evangelho segundo Immanuel Kant

Para a nossa sociedade, salvar a própria pele à custa do martírio só é digno de ser ovacionado quando o exemplo puder ser isolado em cruzes e pedestais

Por Flávio Ricardo Vassoler
Atualizado em 30 jul 2020, 20h24 - Publicado em 12 jul 2018, 07h33

Por não fazer parte do território contíguo da Federação Russa, a cidade de Kaliningrado, à beira do Mar Báltico, entre a Polônia e a Lituânia, é o que a Geografia chama de exclave.

Entre os séculos XV e XVII, a antiga cidade de Königsberg, fundada por cavaleiros teutônicos, pertenceu à Polônia.

Com a unificação e o fortalecimento militar da Alemanha, no fim do século XIX, Königsberg passou a fazer parte do Reich.

Ao caminhar pelo centro da cidade, deparo com prédios de arquitetura alemã transpassados por letreiros em cirílico. É assim que, com uma fachada entalhada em madeira rústica, o Баварский Pесторан (Bavarski Restoran, Restaurante Bávaro) anuncia suas iguarias que remontam à época da dominação germânica; um prédio acinzentado e austero de quatro andares, hoje sede de um instituto tecnológico próximo da praça central de Kaliningrado, já abrigou as instalações da temível Geheime Staatspolizei (Polícia Secreta do Estado), que os nazistas chamavam pelo acrônimo de Gestapo.

Com a vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, o primeiro-ministro inglês Clement Attlee (1883-1967), o presidente dos EUA Harry Truman (1884-1972) e o ditador soviético Ióssif Stálin (1878-1953) se reuniram em Potsdam, cidade situada na região leste da Alemanha, entre 17 de julho e 02 de agosto de 1945, para redesenhar o mapa da Europa segundo suas pretensões geopolíticas.

Acordou-se que a cidade de Königsberg, com localização sumamente estratégica à beira do Mar Báltico, passaria a fazer parte da União Soviética.

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Com o falecimento do bolchevique Mikhail Kalinin (1875-1946), que participara da Revolução Russa de 1917, Königsberg foi rebatizada como Kaliningrado.

Entre 1946 e 49, a população alemã foi expulsa da cidade, ocorrendo, então, sua ocupação (a tomada do butim) por cidadãos soviéticos.

Königsberg/Kaliningrado é famosa por ser a cidade onde nasceu, viveu e morreu o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804).

Estátua do filósofo alemão Immanuel Kant na Universidade de Kaliningrado (Foto/Creative Commons)

Com sua rígida disciplina prussiana, Kant costumava caminhar pela cidade diariamente e sempre no mesmo horário. Os conterrâneos do filósofo chegavam até mesmo a acertar seus relógios com as caminhadas kantianas.

Consta, ademais, que Kant ligava a cabeceira de sua cama à maçaneta da porta do banheiro com um fio de barbante, para que, quando fosse fazer suas necessidades fisiológicas de madrugada, o filósofo fosse devidamente guiado e não perdesse seu precioso tempo de descanso; assim, suas reflexões e escritos poderiam ser maximizados durante o dia.

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Certo fim de tarde, porém, fez o impossível acontecer: Kant se atrasou em sua caminhada diária. (Sumamente atordoado, até mesmo o fio de barbante se rompeu.)

Os pacatos moradores de Königsberg ficaram em polvorosa: mas o que teria acontecido ao nosso filósofo?

Teria Kant sofrido um acidente?

Meu Deus, teria Kant falecido?!

[O puritanismo protestante tentava sufocar a mais ínfima (e pecaminosa) especulação de que o digníssimo Immanuel Kant pudesse ter se demorado em alguma casa de tolerância nas regiões obscuras de Königsberg.]

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Ora, meu Deus, mas o que foi que aconteceu?!

Algo muito, mas muito sério sucedera, pois nada nesse mundo poderia fazer com que Kant se atrasasse em sua caminhada diária.

Alarmados, os moradores acorreram à casa do filósofo.

Lá chegando, os conterrâneos encontraram Kant todo desalinhado e sem sua peruca grisalha característica, o que logo os fez pensar que o filósofo fora acometido por algum grave problema de saúde.

Não fora isso, no entanto, que conseguira abalar a férrea disciplina prussiana de Kant.

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Aos 65 anos, 2 meses e 22 dias, o autor da Crítica da razão pura (1781) e da Crítica da razão prática (1788) se atrasara, pela primeira vez na vida, ao ficar sabendo que, com a tomada de assalto da Bastilha, a prisão política de que o absolutismo monárquico lançava mão, a Revolução Francesa irrompera em Paris. Königsberg e o mundo jamais esqueceriam o dia 14 de julho de 1789.

Immanuel Kant tornara sumamente famosa a utopia do imperativo categórico ético, segundo a qual todos e cada um de nós, ao agirmos, devemos nos balizar por parâmetros passíveis de universalização, de tal maneira que os demais só venham a ser positivamente afetados por nossas ações. Ao agir, então, eu sempre devo me colocar no lugar do outro e respeitá-lo não como um meio (um instrumento) para os meus fins egoístas, mas como um fim em si mesmo, isto é, como um sujeito ontológica e igualmente detentor de dignidade.

Se eu dissemino a mentira e a extorsão, a violência e a pilhagem, estou autorizando todos e cada um dos meus semelhantes a agir conforme os mesmos parâmetros. Logo, a guerra de todos contra todos se estabelece.

Se, no entanto, eu agir segundo os princípios da retidão e da reciprocidade, todos os demais, intrinsecamente respeitados, também poderão fazê-lo, de tal maneira que, em meio à utopia kantiana do imperativo categórico ético, seria possível alcançar a paz perpétua.

[Pouco passível de dobrar a primeira esquina da história humana repleta de choro e ranger de dentes, a suma cordialidade do imperativo categórico ético bem pode ser imaginada em meio à gentil (e provinciana) Königsberg de Kant, cidadezinha em que todos os habitantes se conheciam e jamais deixavam de dar bom dia, boa tarde e boa noite entre as carruagens e igrejas, tavernas e casas de tolerância.]

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Quando irrompe a Revolução Francesa, a promessa de disseminação de governos republicanos que acabassem com as arbitrariedades do absolutismo monárquico faz com que Kant projete que, enfim, o imperativo categórico ético ultrapassaria os limites de Königsberg e passaria a balizar as relações entre os cidadãos, as cidades, os Estados e as Nações do mundo segundo parâmetros racionalmente constitucionais.

Eis, segundo Kant, a resposta para a questão sobre o que seria a essência do Iluminismo.

A utopia do imperativo categórico ético é tão revolucionária que ela ultrapassa o republicanismo iluminista de Kant, saúda o clamor por liberdade, igualdade e fraternidade dos revolucionários franceses, aplaude o ardor socialista por uma terra sem amos e, ao fim e ao cabo, desemboca no mais radical, coerente e responsável anarquismo. Senão, vejamos.

Kant, obviamente, não era ingênuo a ponto de pressupor que o imperativo categórico ético ocorreria no éter, isto é, em condições puramente arquetípicas, abstratas e à revelia da profunda desigualdade jurídica, econômica e social de sua época. A utopia kantiana de indivíduos reciprocamente cordatos pressupõe a universalização – em termos propriamente iluministas, a racionalização – de tal atmosfera para o todo social.

Se a sociedade fosse organizada segundo os parâmetros do imperativo categórico ético, com leis que norteassem a reciprocidade entre Nações, Estados, cidades e cidadãos, o todo e as partes (os indivíduos) se correlacionariam de forma coerente e orgânica. No limite, os indivíduos poderiam fazer equivaler a universalidade utópica da lei regida pelo imperativo categórico com suas próprias consciências, de tal maneira que cada sujeito racional se transformasse em uma carta constitucional em miniatura. Nenhuma autoridade precisaria me dizer, então, o que fazer para respeitar o outro como alguém igual a mim mesmo – a bem dizer, como parte de mim mesmo, já que outro convive comigo em sociedade.

O sujeito autônomo e consciente de si e do outro, para além do jugo da lei que já lhe seria exterior, projeta, assim, o limite da utopia kantiana que desembocaria no mais rematado e revolucionário anarquismo.

Se quisermos traçar uma genealogia para o imperativo categórico ético de Kant, poderemos considerá-lo uma secularização filosófica da regra de ouro, princípio basilar para as mais diversas tradições religiosas. Nesse sentido, eis o que nos revela o seguinte fragmento da obra A grande transformação (Companhia das Letras, tradução de Hildegard Feist), de autoria da estudiosa de religiões Karen Armstrong (1944 – ): “Não faças aos outros o que não farias a ti mesmo. (…) Se, por exemplo, toda vez que nos sentíssemos tentados a tecer um comentário hostil sobre um colega, um irmão ou um país inimigo, pensássemos em como nos sentiríamos se o mesmo comentário se referisse a nós – e desistíssemos de tecê-lo –, superaríamos a nós mesmos. Esse seria um momento de transcendência. Se tal atitude se tornasse habitual, poderíamos viver num ekstasis permanente, não porque entramos num transe exótico, mas porque ultrapassamos as fronteiras do egocentrismo. (…) O teste é simples: se nossas convicções – seculares ou religiosas – nos tornam hostis, intolerantes e maldosos em relação à fé alheia, não são ‘profícuas’. Se, porém, nos impelem a agir compassivamente e a honrar o estranho, são boas, úteis e válidas. Esse é o teste da verdadeira religiosidade em todas as grandes tradições”.

Ao nos lembrarmos da história do século XX e do monte de ruínas em que a Königsberg de Kant foi reduzida pelos bombardeios da Segunda Guerra Mundial, bem constatamos o adiamento (quiçá, a suma impossibilidade) da bandeira utópica hasteada pelo imperativo categórico ético de Kant.

Ocorre que, a despeito da cordialidade tão protestante quanto provinciana de Königsberg – cidade da qual Kant jamais teria saído em seus longevos 80 anos de vida –, o filósofo conseguiu entrever alguns pontos cegos para sua utopia ética – situações aporéticas em que não seria possível exercer o imperativo categórico de forma alguma; situações radicalmente amorais que parecem ter escapado até mesmo à onisciência de Deus.

Imaginemos, por exemplo, a situação de dois náufragos que tentam sobreviver, desesperadamente, apoiados em uma tábua de madeira.

Logo se torna patente para os dois pobres diabos que a flutuação da tábua em meio às águas não comportará dois sobreviventes – suponhamos que se trate de um naufrágio ocorrido no Mar Báltico, perto da orla de Königsberg, de modo que os gritos e clamores por socorro pudessem acossar as madrugadas regradíssimas de Kant com a agonia do pesadelo.

Se Fritz só puder sobreviver ao naufrágio alijando Eugen da tábua de salvação (e vice-versa), não será possível exercer o imperativo categórico ético, uma vez que Fritz deve aniquilar Eugen para continuar vivo – neste caso, o outro tem que ser transformado em um instrumento radical da minha vontade, que, por sua vez, se vê reduzida à mais bestial luta pela sobrevivência.

Diante do buraco negro da razão prática convertida na mais impura desrazão, Kant se vê compelido a denegar as seguintes palavras de Jesus Cristo: “Ouvistes o que foi dito: olho por olho e dente por dente. Eu, porém, vos digo que não resistais ao mal; mas, se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a outra; e àquele que quiser pleitear contigo e tirar-te a túnica, oferece-lhe também a capa” (Mateus, 5: 38-40).

(O desespero protestante de Kant luta para abjurar a vontade blasfema de responsabilizar Deus por tamanho desatino em Sua criação.)

Imaginemos, no entanto, que, da planície de Kaliningrado, irrompa, subitamente, uma enorme montanha. (Afinal, Königsberg, do alemão, quer dizer “Montanha do rei”.)

Imaginemos, ademais, que os alpinistas Immanuel, Fritz e Eugen estejam quase alcançando o cume da montanha mágica atados por uma mesma corda que os transpassa pela cintura.

Súbito, Eugen se desequilibra e não consegue mais se agarrar à montanha.

Eugen só não despenca imediatamente porque a corda o ata a Fritz.

Não suportando o peso de Eugen, Fritz também acaba se desgarrando da montanha.

Fritz só não despenca imediatamente porque a corda o ata a Immanuel.

Agora, o pobre Immanuel luta, de forma inglória, para se manter agarrado à montanha tendo que suportar o enorme peso de Fritz e Eugen.

Para Immanuel, agir segundo os parâmetros de Cristo significa ser totalmente solidário à morte de Fritz e Eugen. Em outras palavras, para proceder à imitação de Cristo, Immanuel precisa ser crucificado.

Logo ocorre a Immanuel, no entanto, uma ideia mais humana do que kantiana – uma saída racional mais prática do que pura: o alpinista que ainda depende das próprias forças saca uma faca do bolso da calça e, com sumo pesar (e alívio) no coração, corta a corda que o ata a Fritz.

Para salvar a própria pele, Immanuel precisa fazer com que a lei da gravidade mate Fritz e Eugen.

Ora, o que é preferível: um mártir ou um sobrevivente?

A despeito de rezar para Jesus Cristo há mais de 2 mil anos, a humanidade não parece ter dúvidas.

Tanto é assim que, para tal situação de aporia das razões pura e prática – situação blasfema que parece transformar a onisciência de Deus em cumplicidade –, o Código Penal não impõe sanções para Immanuel.

Ao condenar Fritz e Eugen à lei da gravidade para salvar a própria pele, Immanuel sai incólume diante da lei penal, que, nesse caso, o considera inimputável.

Para a nossa sociedade, salvar a própria pele à custa do martírio só é digno de ser ovacionado quando o exemplo puder ser devida e hermeticamente isolado em cruzes e pedestais. No mais, salve-se quem puder.

Ora, o que é preferível: um mártir ou um sobrevivente?

Em meio às ruínas fumegantes da Königsberg bombardeada por ingleses, norte-americanos e soviéticos, o soldado alemão/sobrevivente Fritz Eugen Kant sentencia:

– Na guerra, eu não posso rezar segundo o princípio do “Não matarás”. Na guerra, das tábuas da lei que se confundem com os escombros, resta apenas o 11º mandamento: espero não matar.

Sobre o autor

Flávio Ricardo Vassoler, escritor e professor, é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA). É autor das obras O evangelho segundo Talião (nVersos, 2013), Tiro de misericórdia (nVersos, 2014) e Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018), além de ter organizado o livro de ensaios Fiódor Dostoiévski e Ingmar Bergman: O niilismo da modernidade (Intermeios, 2012) e, ao lado de Alexandre Rosa e Ieda Lebensztayn, o livro Pai contra mãe e outros contos (Hedra, 2018), de Machado de Assis. Página na internet: Portal Heráclito, https://www.portalheraclito.com.br.

 

 

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