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Por Flávio Ricardo Vassoler
Um olhar para o cotidiano histórico e cultural da Rússia - mas muito além do futebol
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Maturidade do adulto: recuperar a seriedade da criança ao brincar

Assim que começo a caminhar pela feira à russa, babuchka (vovó), espirituosa e rechonchuda, me pega pela mão e começa a conduzir este forasteiro

Por Flávio Ricardo Vassoler
Atualizado em 30 jul 2020, 20h24 - Publicado em 7 jul 2018, 08h18

Na confluência da avenida Budionovski com a rua Turguenievskaia, chego ao Mercado Central de Rostov, a 5 quadras (se tanto) do rio Don.

Mercado Central de Rostov-sobre-o-Don (Flávio Ricardo Vassoler/VEJA.com)

 

Assim que começo a caminhar pela feira à russa, uma бабушка (babuchka, vovó) espirituosa e rechonchuda, com um lenço multicolorido ao redor da cabeça e amarrado sob o queixo, me pega pela mão e começa a conduzir este forasteiro por entre as barracas.

A babuchka Alióna Ivanovna tem olhinhos vivazes porém pequeninos – o acúmulo de pele bem enrugada e flácida ilha seus olhos e os transforma em pequenas frestas. Os cabelos brancos como fios de nuvem se esgueiram por sob o lenço e lhe caem pelas têmporas e sobre a testa. Quando a vovó sorri, o sol de verão reluz em sua coleção de dentes de ouro – na finada União Soviética, problemas dentários tendiam a implicar a extração dos dentes e sua reposição por próteses de ouro, como se a pátria do socialismo quisesse desdenhar do nobre metal burguês colocando-o na boca de seus banguelas proletários.

A babuchka logo me faz aterrissar em cada uma das barracas.

Ela me leva a cheirar e a provar a policromia russa de legumes e temperos, frutas e doces – cada degustação pressupõe o toque, e as pontas dos meus dedos vão se embebendo de sumo, óleo e açúcar.

Iguarias rusófilas do Mercado Central de Rostov-sobre-o-Don (Flávio Ricardo Vassoler/VEJA.com)

Alióna Ivanovna alisa os pêssegos como se estivesse penteando o dorso de um gato.

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A vovó coloca um pêssego ao lado de uma maçã: ambos têm o mesmo tamanho e as mesmas cores, com a predominância do amarelo, no pêssego, e do vermelho, na maçã, como se o primeiro fosse a meia virada do avesso da segunda.

Ao comparar a solidão de uma cereja bem vermelha com o bloco de carnaval de um cacho de uvas graúdas, a babuchka sentencia que a expressão “cereja do bolo” mais parece um prêmio de consolação para a fruta mais triste que existe.

Para Alióna Ivanovna, a capa verde ao redor da espiga é o terno do milho.

E quando a vovó me faz mergulhar as mãos numa bacia de amoras para esmagá-las como a argila malemolente das aulas de Educação Artística com as professoras Cleide e Regina, lá pelos idos de 1988?

Tomates embebidos num molho de repolho, salsinha e orégano; pepinos e picles recheados com berinjela e cenoura bem raladinha; beterrabas amorfas e quase pretas de tão roxas ao lado de batatas pálidas e cabeças de alho solenes que mais parecem os bulbos das igrejas ortodoxas.

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Súbito, Alióna Ivanovna aponta com o dedo todo curvado pelo reumatismo – é como se o indicador direito da babuchka tivesse uma corcova – para uma barraca com várias garrafas de plástico repletas de um líquido bem dourado.

– Se eu lhe dissesse que aquele óleo de girassol é o mais puro mel, jovem, você não acabaria comprando gato por lebre?

Mal tenho tempo de sorrir, uma vez que a vovó já abriu a tampa de um pote de açafrão com um cheiro ao mesmo tempo incisivo e apaziguador. Ela me pergunta, então, de forma inusitada, se eu já estive no Saara. Por um acaso, há pouco mais de 6 meses, eu singrei o Saara egípcio, nas imediações da Cidade do Cairo, a bordo de um camelo.

– Então me diga, jovem, se você não consegue imaginar um deserto de dunas e mais dunas desse açafrão amarelo e denso, como se ele fosse o irmão do meio entre a areia e a terra?

Quando faço menção de perguntar para a vovó Alióna Ivanovna se ela já pensou em escrever poesias com seu panteísmo colorido e sinestésico, ela despeja uma profusão de sementes e amendoins em minhas mãos emergencialmente abertas em concha.

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– Eu já trabalho neste mercado há mais de 50 anos, jovem. Para você, que passa por aqui como um nômade, há apenas dois ou três tons de marrom. Mas eu sei dizer se o amendoim está fresco ou não pela intensidade de sua cor e pela textura de sua casca; quanto às sementes, se elas não resistirem ao teste de uma leve dentada – a babuchka posiciona uma semente entre os caninos e lhe impõe certa pressão –, é preciso devolver ao útero da terra os rebentos que não conseguiram vingar.

Chega a hora do batalhão de nabos e rabanetes. De tão bojudos, alguns deles mais parecem chocalhos, e Alióna Ivanovna não se furta em chacoalhá-los, ritmicamente, como se fosse percursionista da banda caribenha Las babuchkas de Rostov.

Em seguida, em meio à mistura tresloucada de alhos com bugalhos, despontam as tâmaras. Antes de ir a Israel, eu nunca provara uma tâmara, essa verdadeira cápsula de açúcar, iguaria que me parece um bombom do deserto. Contra o meu deleite, no entanto, a babuchka sentencia que o corpo abaulado (e como que pisoteado) da tâmara lhe dá a forma de uma barata.

E que dizer dos limões russos radicalmente amarelos que mais parecem filhotes do Sol? (Danada e casamenteira como ela só, Alióna Ivanovna me sussurra que os bicos dos limões parecem tão intumescidos quanto os mamilos da bela feirante – de cabelos bem pretos e lisos como a crina de um cavalo – que não tira os olhos de mim desde que eu cheguei à barraca.)

Limões rostovianos, verdadeiros filhotes do Sol (Flávio Ricardo Vassoler/VEJA.com)

Quando chega a hora e a vez dos doces multicoloridos, eu pareço ouvir a pergunta do palhaço de minha infância:

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– E hoje tem marmelada?

Tem, sim, senhor! – exclama Alióna Ivanovna já munida de um saco de marmeladas quadriculadas com todas as cores do arco-íris.

Biscoitinhos com geleia; roscas e bombas de chocolate; tortas de nata; pastéis, entre delgados e bojudos, com creme de limão; bolachas secas, crispadas de açúcar, e bolachas com recheio de avelã; bolachas amorfas que, mesmo no verão calorento de Rostov, parecem polvilhadas com a neve russa; doces compactos como tijolos e de nomes impronunciáveis – verdadeiros queijos de açúcar.

Quando a babuchka me oferece um cherbet, eu me sinto em casa.

Alióna Ivanovna: Você já tinha provado o cherbet?

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Eu: Em Novosibirsk, babuchka, ele não é tão doce como o daqui.

Versão siberiana do cherbet (Flávio Ricardo Vassoler/VEJA.com)

(COLOCAR AQUI A FOTO 4 DO CHERBET)

Rostov-sobre-o-Don fica a 1.000 km ao sul de Moscou, onde o Diário de um escritor na Rússia começou a ser escrito. Como um tapete voador, o cherbet me leva de volta ao Mercado Central de Novosibirsk, capital da Sibéria Ocidental, cidade que fica a mais de 3.000 km a leste do Mercado Central de Rostov-sobre-o-Don.

Conto para a babuchka de Rostov que, há pouco menos de 1 ano, em agosto de 2017, uma babuchka de Novosibirsk, também com os cabelos bem brancos (só que envoltos por um lenço vermelho), me ofereceu o cherbet, uma espécie de alfajor feito com frutas secas moídas e sementes de girassol, nozes, mel e gergelim.

Enquanto conversamos, os olhos da senhora Olga Titova (a babuchka de Novosibirsk) vão ficando marejados. Quando lhe pergunto se está tudo bem, ela saca do bolso do avental um pequeno porta-retrato dourado com uma foto de um jovem fardado – um rapaz de olhos estreitos e lábios finos, testa ampla e nariz grande e vigoroso.

– Este é Oleg, meu marido: ele se parece com você.

– E onde ele está agora, dona Olga?

Ela aperta minhas mãos antes de dizer que o soldado Oleg Tchernov foi um dos 20 milhões de soviéticos ceifados pela Segunda Guerra Mundial.

– Vá ao Museu Ferroviário de Novosibirsk – faça isso por mim. Lá você vai ver o vagão-hospital onde meu Oleg morreu – ele não suportou a amputação de uma perna sem anestesia. Боже мой! (Bozhe mói! Meu Deus!)

Ao se despedir, a senhora Titova afaga meu rosto e, em seguida, me dá um cherbet.

– Este é o doce favorito do Oleg – ele vai ficar contente com o presente. До свидaния! (Do svidania! Até mais ver!)

Logo em seguida, vou até o Museu Ferroviário de Novosibirsk e encontro o vagão-hospital.

Quem caminha pelo vagão silencioso, entre as macas e os instrumentos médicos perfilados, precisa se esforçar para imaginar que as cirurgias traumáticas aqui realizadas implicavam a vida e a morte imediatas dos soldados mutilados após o inferno do front. Com sorte, doses minguadas de vodca anestesiavam as amputações – no mais, salve-se quem puder!

E eis que os médicos, enfermeiras e moribundos do vagão-hospital transpassado por agonia e sangue eram vigiados por retratos do líder soviético Ióssif Stálin, mentor de julgamentos políticos que resultaram em milhões de execuções e expurgos para campos de trabalho forçado espraiados pelos confins da Sibéria.

Sem ter como tranquilizar os soldados trêmulos antes das amputações com serras, facas e machados, as enfermeiras só faziam apelar ao terror e à devoção que Stálin inspirava para (tentar) aplacar os gritos e uivos:

– Aguente firme, vamos! Porte-se bem, soldado: Stálin está vendo você!

A babuchka Alióna Ivanovna fica com os olhinhos marejados – as frestas se transformam em pequenos lagos – ao ouvir a história de Olga Titova e Oleg Tchernov. (A vovó não me diz nada, mas é bem possível que ela mesma, como ocorre na maioria das famílias russas, tenha perdido alguém em meio à guerra.)

Para resgatá-la da tristeza e da saudade incontornáveis, eu me lembro de uma segunda história siberiana – dessa vez, proveniente das imediações da aldeia de Listvianka, que fica a mais de 1.900 km a leste de Novosibirsk, onde estive pouco menos de duas semanas antes de chegar ao mercado em que acabei conhecendo a senhora Olga Titova.

Peço à babuchka Alióna Ivanovna que me acompanhe em minha narrativa a bordo do Grande Expresso Transiberiano.

Da janela da minha cabine no trem, vejo a sucessão vertiginosa de estepes entremeadas pela taiga, a floresta siberiana de coníferas que mais parece um pelotão perfilado. Logo desponta uma casinha rústica de madeira, em frente da qual um velho de cabelos e barbas bem brancos parte a lenha e limpa o suor do rosto com um lenço amarelo amarrado ao redor do punho. E eis que a jovem Nástia, a funcionária do trem que cuida das cabines, nota que não consigo tirar os olhos da sucessão infinda das estepes. Ela pede, então, que eu imagine a vastidão siberiana recoberta de neve no ápice do inverno. Quando faço menção de ficar boquiaberto, Nástia saca uma garrafa de vodca de não sei onde e me diz:

– Para nós, os russos siberianos, 40 quilômetros, 40 graus abaixo de zero e 40% de teor alcoólico não são nada – absolutamente nada!

Nástia enche dois copinhos e, antes de decretar que precisamos entorná-los em um só trago, ela sentencia:

– На здоровье! (Na zdorovie, saúde!)

Súbito, o Grande Expresso Transiberiano passa a margear o lago Baikal, e Nástia me revela, entre tragos e soluços, que “o Baikal é o mais antigo e profundo lago da Terra, com 25 milhões de anos e 1680 metros de profundidade. Há quem diga que o Baikal é um oceano nascente, já que suas margens crescem 2 centímetros por ano”. (Nástia me mostra as unhas e as pontas dos cabelos como parâmetros para a expansão do gigante Baikal.)

O lago Baikal, no coração da Sibéria (Flávio Ricardo Vassoler)

Descemos do trem e vamos até as margens. Eis que vejo a pequena Sacha a olhar, sucessivamente, de sua bailarina que dança impulsionada por uma manivela para o vaivém das marolas do Baikal. Súbito, Sacha pergunta para a mãe:

– Quando acaba a corda, a bailarina para de dançar, né, mamãe?

– É isso mesmo, querida.

Sacha volta a olhar para as marolas do Baikal. Súbito, ela pergunta:

– E quando vai acabar a corda do lago, mamãe?

Sobre o autor

Flávio Ricardo Vassoler, escritor e professor, é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA). É autor das obras O evangelho segundo Talião (nVersos, 2013), Tiro de misericórdia (nVersos, 2014) e Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018), além de ter organizado o livro de ensaios Fiódor Dostoiévski e Ingmar Bergman: O niilismo da modernidade (Intermeios, 2012) e, ao lado de Alexandre Rosa e Ieda Lebensztayn, o livro Pai contra mãe e outros contos (Hedra, 2018), de Machado de Assis. Página na internet: Portal Heráclito, https://www.portalheraclito.com.br.

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