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Por Flávio Ricardo Vassoler
Um olhar para o cotidiano histórico e cultural da Rússia - mas muito além do futebol
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Abandonai toda a esperança, vós que entrais

A bordo do trem que vai de Níjni Novgorod a Kazan, 23 de junho de 2018

Por Flávio Ricardo Vassoler
Atualizado em 30 jul 2020, 20h25 - Publicado em 23 jun 2018, 07h29

Da colina onde fica o Kremlin de Níjni Novgorod, é possível ver, rente à outra margem do Volga, a Catedral de Alexander Niévski – o amarelo vivaz da igreja contrasta com as águas turvas do rio e com os prédios cinzentos que, a uma certa distância, circundam a catedral; assim, enquanto caminho pela ponte, a Alexander Niévski desponta com o acalento (e o refúgio) de um ninho.

Secundada pela sentinela de um enorme sino de bronze exposto diante da igreja, a Niévski é encimada por três bulbos sinuosos como a chama das velas – Pai, Filho e Espírito Santo – que envergam a cruz ortodoxa; à diferença da cruz católica, a cruz ortodoxa é composta por três travessas horizontais: a travessa superior traz a inscrição latina I.N.R.I. (Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus); o horror da travessa intermediária cala a pregação de Cristo com os pregos dos carrascos romanos; por fim, a travessa inferior, inclinada como uma hipotenusa, representa o arremedo de apoio para os pés.

1. Catedral de Alexandre Níevski, em Níjni Novgorod, à frente da qual desponta um grande sino de bronze (Flávio Ricardo Vassoler/VEJA)

Uma senhora com a cabeça envolta por um lenço policromático amarrado sob o queixo sobe, lentamente, a escada rumo à catedral; a cada degrau, ela faz o Pelo Sinal ortodoxo, que também guarda diferenças em relação a seu congênere católico: ela junta o dedo médio e o indicador destros ao dedão – Pai, Filho e Espírito Santo – e inicia a persignação que vai da testa (“Em nome do Pai”), chega até o umbigo (“do Filho”) e leva os três dedos primeiramente ao ombro direito para só depois tocar o ombro esquerdo (“e do Espírito Santo, amém”).

O interior de uma igreja ortodoxa – da mais singela à mais imponente, como a Niévski – mais parece a emanação do arco-íris: do azul, entre celeste e turquesa, ao amarelo intenso e luminoso, passando pelo rosa mais sereno e apaziguador, as paredes e pilastras policromáticas se veem entremeadas por retratos dos apóstolos e santos; episódios bíblicos desenhados por todos os lados capricham nas túnicas, para os homens; no lenço ao redor da cabeça e amarrado sob o queixo, para as mulheres; e nos olhos bem abertos e extáticos, para ambos. As auréolas dos santos – círculos de luz ora totalmente amarelos, ora com o arco delimitado em vermelho – são onipresentes. Geralmente, há um lustre central, de ouro, que desce a partir da abóbada mais sobrelevada. Incensórios suspensos, mais frequentemente de prata, são tão comuns quanto os castiçais dourados nos quais os fiéis, sempre em pé (não há bancos nas igrejas ortodoxas), depositam suas velas delgadíssimas e fazem suas orações, pedidos e promessas (não necessariamente nessa ordem).

O Cristo ortodoxo, por sua vez, requer um fôlego descritivo à parte.

Vi a imagem oriental de Jesus, pela primeira vez, em Moscou – era abril de 2008, e eu mal havia chegado à capital russa. Pois eu me lembro bem da profunda impressão que tal Cristo semita me causou: a pele cabocla do deserto; os olhos grandes como tâmaras e melancólicos pelo prenúncio da Paixão; as olheiras profundas e piedosas; o nariz delgado e aquilino como que a prenunciar uma das hastes da cruz; a barba desgrenhada – ou melhor, revolta, indômita. Nunca consegui descobrir a verdadeira elevação do sofrimento no Cristo etnocêntrico (loiro, de olhos azuis) do catolicismo. O pathos do Cristo ortodoxo, no entanto, me leva diretamente às dolorosíssimas prostrações do Monte das Oliveiras.

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Interior da Catedral de Alexandre Niévski, em Níjni Novgorod
Interior da Catedral de Alexandre Niévski, em Níjni Novgorod (Flávio Ricardo Vassoler/VEJA)

 

Logo me lembro, então, daquela que talvez seja a cena mais humanamente emblemática dos evangelhos: o momento em que o apóstolo Judas Iscariotes (que fora escolhido por Cristo) revela aos soldados romanos e aos fariseus quem é Jesus ao lhe dar um beijo no rosto, conforme fora combinado.

Estupefato, assim falou Jesus Cristo (aquele, lembremos, que escolhera Iscariotes como apóstolo): – Judas, com um beijo você está traindo o Filho do homem? (Lucas, 22:48) O Sermão da Montanha, de Jesus Cristo, nos oferece o beijo de amor e de perdão. O Sermão da Estepe, proferido por um dos apóstolos escolhidos por Cristo, nos traz o beijo de Judas. Eis os dois lábios com que beija a natureza humana.

Nesse sentido, uma cena emblemática do filme Leviatã (2014), dirigido pelo russo Andrei Zviaguintsev (1964 – ), tem muito a nos dizer. (Recapitulemos, brevemente, o contexto narrativo para que possamos descer ao mais baixo círculo do inferno.)

O mecânico e artesão Nikolai (Kolia) é pai do jovem Romka, marido de Lilya e melhor amigo de Dmítri. Kolia é proprietário de uma casa que fora construída por seu avô, um dos pioneiros da cidadezinha que fica num rincão da Rússia.

Ocorre que o terreno da casa de Kolia está sob a mira de Vadim, um político municipal inescrupuloso que venda os olhos da Justiça para que, de uma forma ou de outra, seu ímpeto empreendedor se realize.

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A princípio, o município, secundado pela Justiça – ou seria a Justiça, secundada pelo município? (a ordem dos fatores não altera o produto) –, oferece uma indenização, bem abaixo do valor de mercado, pela casa de Kolia que, irremediavelmente, será desapropriada.

Ocorre que essa primeira desgraça a se abater sobre Kolia é, única e tão-somente, a primeira.
Dmítri, melhor amigo/advogado de Kolia, sugere, eventualmente, que o amigo aceite a indenização e se mude para Moscou com a família. Vale frisar que Kolia não quer se desfazer da casa que fora construída com o suor e o afinco de seus ancestrais. “Nós moraremos perto um do outro em minha cidade, Kolia!” – exclama Dmítri. Logo ficamos sabendo, no entanto, que Dmítri é amante de Lilya. (Será que o amante/advogado/muy amigo repassaria a indenização pela expropriação para Kolia ou a embolsaria para fugir com Lilya?)

Kolia e seu filho Romka descobrem o caso extraconjugal de Lilya, que, vale frisar, não é a mãe de Romka; é quando o marido traído, beberrão (como muitos russos) e bravateiro como ele só ameaça matar o amigo traidor e a adúltera. (Mero fogo fátuo, pois Kolia, que ama Lilya com o fundo de sua alma, logo lhe perdoa e passa a desejá-la com ainda mais ardor.) Romka, no entanto, não consegue perdoar a traição da madrasta. Ele exige que Kolia, que é um pai bastante amoroso (a despeito de uns safanões corretivos de vez em quando), abandone Lilya. Kolia, então, fica entre a cruz e a espada – o amor de pai contra o amor de marido.

Quiçá acossada pela culpa por ter traído o marido que tanto a ama justamente com Dmítri, Lilya fica desesperada. (Deus e o diabo estão em luta, e o campo de batalha é o coração da adúltera.) Diante da possibilidade de ser abandonada por Kolia – para onde foi o ex-amante/oportunista Dmítri, hem? – e de se ver completamente sozinha e desamparada, Lilya, em um rompante tão tresloucado quanto irreversível, se joga de um penhasco.

Colega da proletária Lilya na fábrica de processamento de linguiças, ngela começa a desconfiar de Kolia em face do sumiço de sua amiga adúltera. “Ele não havia dito que mataria o amigo e a mulher depois de ficar sabendo da traição? E agora?!” Assim ngela especula com seu marido, o policial Pável (Pacha), que, muitas vezes, mandara consertar seu carro (e o de seus amigos), de graça, com o generoso Kolia. ngela arremata:

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– Pacha, faça alguma coisa, homem, você é policial! Para onde a Lilya foi? Tá na cara que o Kolia matou a Lilya irado pela traição – vamos, homem, é seu dever investigar isso, é seu dever denunciar tudo isso!

O município sob o punho de Vadim tem interesse na imediata desapropriação do terreno onde fica a casa secular de Kolia. Tanto melhor se, para chegar a esse resultado, Kolia for indiciado.

A polícia e a Justiça, secundadas pelo poder municipal, corroboram as meras suspeitas (convicções sem provas) levantadas por ngela.

Kolia é traído pela mulher a quem ama e pelo melhor amigo.

Lilya se suicida.

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Dmítri simplesmente desaparece.

Kolia é condenado a 15 anos de prisão.

Kolia tem a casa de seus ancestrais desapropriada – e destruída.

ngela e Pável, muy amigos do casal Kolia e Lilya, vão ao que restou da casa de Romka, após a prisão de Kolia, para sugerir ao filho abandonado que ele fique sob a guarda daqueles que denunciaram seu pai à polícia. “Romka, você ainda não tem 18 anos; se você não ficar conosco, o Estado vai te mandar para um orfanato”. Romka (ainda) não sabe que seus potenciais pais adotivos foram os artífices da prisão/condenação de Kolia; entretanto, o órfão precoce, já devidamente calejado pelo niilismo da vida, assim sentencia para os lobos em pele de cordeiro: “Eu sei por que vocês querem me adotar: vocês querem ficar com o dinheiro da indenização pela expropriação da casa, não é?”

Kolia, então, pode ter o filho surrupiado por aqueles que araram a terra de sua condenação torpe e radicalmente injusta.
Única personagem a clamar por justiça verdadeira e a agir com retidão – como trabalhador e como reclamante, como pai, marido e amigo – em meio a um verdadeiro ninho de víboras, Kolia, o injustiçado, se sente abandonado, antes de mais nada, por Deus.

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Kolia, o desgraçado.

É assim que, pouco antes de ser preso, Kolia depara, por acaso – como todos os acasos que haviam despencado em sua vida –, com o padre de seu vilarejo. Chega o momento, então, de Kolia, tataraneto de Jó, perscrutar o sentido de sua vida em meio a tantas desgraças.

Kolia: Vamos, padre, me diga: onde está o seu Deus onipotente e onipresente agora? Será que Ele virou cúmplice de Sua própria onisciência?

Padre: Faz tempo que você não segue os rituais da igreja, Kolia – faz tempo que você não vai à missa, faz tempo que você não faz orações, faz tempo que você não acende velas.

Kolia: Quer dizer que se eu estivesse acendendo velas teria sido tudo diferente?

Padre: Não sei. O Senhor se move de maneiras misteriosas.

Kolia: Não sabe, padre? Ora, então por que você me chama para a confissão?

Kolia, o desgraçado, não precisa ler o romance O idiota (1869), de Dostoiévski, para entender, contra cada fímbria de seu corpo, as agruras de Hippolit, um jovem de pouco mais de 20 anos (se tanto) que se vê condenado à morte por uma tuberculose avançadíssima que já não vai abandoná-lo.

É assim que, em dado momento do romance, Hippolit escreve uma carta-testamento, ao fim da qual, como Kolia, o jovem interpela o silêncio de Deus para tentar perscrutar o sentido de seu holocausto: “Nós humilhamos demasiadamente a Providência, atribuindo-Lhe os nossos conceitos, movidos pelo despeito de não podermos compreendê-La. Porém, se ademais é impossível compreendê-La, também é difícil responder por aquilo que não é dado ao homem compreender”.

Sobre o autor

Flávio Ricardo Vassoler, escritor e professor, é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA). É autor das obras O evangelho segundo Talião (nVersos, 2013), Tiro de misericórdia (nVersos, 2014) e Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018), além de ter organizado o livro de ensaios Fiódor Dostoiévski e Ingmar Bergman: O niilismo da modernidade (Intermeios, 2012) e, ao lado de Alexandre Rosa e Ieda Lebensztayn, o livro Pai contra mãe e outros contos (Hedra, 2018), de Machado de Assis. Página na internet: Portal Heráclito, https://www.portalheraclito.com.br.

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