Uma chave de leitura para se aproximar do impenetrável Lacan
Em 'O Estilo de Lacan', professor Christian Dunker ajuda a iluminar (e traduzir) a obra do influente e dificílimo psicanalista e pensador francês
“Eu não os escrevi para que as pessoas compreendessem, eu os escrevi para que as pessoas lessem. O que não é nem remotamente a mesma coisa”. A frase, de Jacques Lacan (1901-1981), se referia aos seus Escritos, mas, ao menos para quem não o estudou a fundo, parece aplicável à sua obra, boa parte dela oriunda das falas registradas em seus famosos seminários parisienses.
Estamos diante de um autor que, para além da psicanálise, vem influenciando e sacudindo diversos campos do pensamento ocidental. De um autor considerado, não sem justificativa, difícil, incompreensível, hermético, impenetrável…
É o homem que botou a linguagem no centro do inconsciente e das relações humanas. Que cunhou expressões e conceitos obscuros à primeira vista, alguns introduzidos com letra maiúscula – o Outro, o Real, fantasma, objeto a, sinthoma.
Então tomemos fôlego e tentemos nos aproximar da fera: por que Lacan virou Lacan, o pensador e o mito, dando origem a uma escola e a um adjetivo próprios (os lacanianos)? Como tatear um autor tão louvado e também atacado desse quilate?
Uma aventura dessas exige acompanhamento. Pois, pegando como mote uma das lições do pensador francês – “Qualquer retorno a Freud que dê ensejo a um ensino digno desse nome só se produzirá pela via mediante a qual a verdade mais oculta manifesta-se nas revoluções da cultura (…) Ela se chama: um estilo” -, Christian Dunker oferece em O Estilo de Lacan, recém-publicado pela Zahar, uma chave e uma lanterna para entrar no edifício lacaniano.
O professor da USP não busca decodificar, um a um, conceitos e princípios de um autor cheio de maneirismos, particularidades e idiossincrasias, mas iluminá-lo num plano maior, recapitulando a gênese de sua obra e discutindo suas influências até os dias de hoje. A senha para esse percurso está na complexa e inventiva prosa de um sujeito erudito com referências mil e vontade de chacoalhar as letras, os divãs e as instituições – uma revolução pela linguagem que deveria se espelhar no microcosmo do trabalho do analista com seu paciente.
Nesse aspecto, como descreve Dunker, a mesa lacaniana se sustenta sobre quatro pernas. O apreço pela oralidade – concretizado pelas aulas abarrotadas que o mestre deu em Paris e outros cantos -, a influência dos místicos medievais e seus sucessores na filosofia ocidental (entre eles outro construtor de arcabouços epistêmicos como Hegel), a visão e a estética barrocas e a irmandade com o surrealismo, muito além dos sonhos.
Costurando inspirações e insights de matriz tão diversa à disciplina fundada por Freud, Lacan fez irromper o papel protagonista da linguagem como via que nos permite interpretar e recriar a(s) realidade(s) e as relações à nossa volta. Radicalizar no meio de expressão, portanto, reflete sua proposta mais ampla de romper dualismos (incluindo forma e conteúdo), rever o processo psicanalítico e transformar o modo como projetamos o mundo e nós mesmos.
Ninguém disse que esse é um empreendimento fácil – a começar por Lacan. Com a palavra, Christian Dunker.
Se o senhor pudesse resumir numa frase – ou em um tweet, como diríamos nos tempos em que a rede social tinha esse nome -, qual a maior contribuição de Lacan para a psicanálise e o entendimento da psique humana? Em um tweet, eu diria que, para Lacan, a forma como falamos e como somos falados determina quem somos e qual o tamanho do mundo onde vivemos.
Lendo seu livro, a impressão que se tem é que, mais do que criar conceitos e teses (como Freud), Lacan condiciona praticamente todo o conteúdo de suas propostas teóricas e clínicas ao (re)trabalho com a forma, isto é, com a linguagem. Aí residem o desafio e a força de sua obra? De fato, a maneira como falamos, como usamos a linguagem, como entramos nos discursos, a relação entre o que dizemos com como dizemos, o dizer e o dito, isso tudo é muito importante para Lacan. Reflete uma preocupação grande com a forma, mas talvez uma de suas revoluções mais importantes antes, para a psicanálise e outros campos do saber, é pensar além da divisão entre forma e conteúdo. Entre significante e significado, entre conceito e coisa. Lacan é um dos primeiros autores contemporâneos a revisar e a desconstruir os dualismos, os binarismos. O que vai nos remeter à radicalização da linguagem como ponto a partir do qual se estruturam o inconsciente, as trocas sociais, a economia libidinal. E ele nos mostra como, a partir disso, a gente pode enfrentar melhor o que se chamaria de o corpo, a mente, mas também uma terceira coisa… O Simbólico, o Imaginário, mas também o Real. O desejo, o amor, mas também o gozo. Lacan introduz, lá nos anos 1960 e 1970, uma ontologia que não opera mais a dois termos.
Pode explicar melhor esses conceitos? Lacan nos mostra como devemos pensar as relações entre os conteúdos e as expressões a partir do Real, do Imaginário e do Simbólico. O Simbólico é a linguagem e suas formas, mas a gente vive também no domínio das imagens. E essa concepção se mostrou relevante para entender como o Imaginário é alienante e manipulável, como também carrega uma inflexão ética e política. A realidade pode ser pensada como um compósito entre Imaginário e Simbólico, mas ela também é furada, também composta por aquilo que a gente não consegue dizer, pelo inapreensível e o inominável. E isso também está operando em nossa construção de mundo.
Na sua visão, qual a ideia mais revolucionária e crucial de Lacan? A ideia que Lacan considerava a sua grande inovação é a de objeto a, ou seja, a de que, na nossa relação com o desejo, com o amor, com o gozo e com a angústia, existe uma opacidade nos objetos que a gente visa, intenciona e representa, inclusive cognitivamente, que se coloca como uma espécie de objeto subjetivo ou de sujeito objetivo. Ela é uma parte, como diria Chico Buarque, de nós mesmos fora de nós mesmos. Uma parte arrancada de mim, exilada de mim, que não está nem no Simbólico nem no Imaginário, mas é uma parte real, que a gente insiste em revesti-la de imagens, tentando dar forma ao que é informe. Assim, o objeto a só aparece na mancha, no engano, na ilusão, e só se manifesta na divisão do sujeito, ali onde ele se mostra evanescente. Essa ideia centraliza e organiza outras ideias importantes de Lacan.
Inclusive na relação com os outros? Sim, isso passa pela sua teoria da angústia, a de que a angústia não existe sem objeto, justamente esse objeto a. A teoria do fantasma, a de que a fantasia que criamos está em relação com essa parte exilada de nós mesmos, e que a gente costuma investir no outro. Daí as relações humanas serem tão problemáticas, desencontradas e disparatadas. O objeto a é, portanto, uma figura do mal-estar, esse mal-estar que cerca o governar, o educar, o desejar… e que atravessa a própria experiência analítica. O objeto a é um bom exemplo dessa proposta que vai além da forma e do conteúdo, do significante e do significado, da divisão entre corpo e alma… dessa leitura mais simples da natureza.
Qual é a principal inovação de Lacan do ponto de vista clínico, no atendimento do paciente? Ele foi trazendo várias inovações nesse sentido, mas eu diria que a mais simples e talvez mais importante tenha sido a radicalização ao olhar a relação analítica e as sessões de tratamento como uma experiência de linguagem, e de linguagem no tempo, e que, portanto, a prática do psicanalista depende de uma atenção rigorosa, uma edição e uma intervenção rigorosas sobre o que o paciente diz. Lacan muda completamente o entendimento de que o analista deve influenciar ou levar o paciente numa direção ou outra, de que o psicanalista vai inocular ideias e guiá-lo. Lacan vai ligar o paciente a suas próprias palavras, guiá-lo para suas próprias palavras e seu próprio desejo, seu inconsciente e seus paradoxos. E, no fundo, ele vai retirar toda essa narrativa mítica edipiana de como a gente deve chegar ao amor concluído ou do que precisa fazer para ser um indivíduo realizado.
E o que muda na prática, sessão a sessão? Por causa disso as sessões com o psicanalista terão tempo variável, que é talvez o que as pessoas mais relacionem a um analista lacaniano. Uma sessão que não tem tempo para terminar, que pode durar mais ou menos, porque depende do que você diz. E o analista vai torcer, cortar, interromper o fluxo, trabalhando o que a pessoa quer dizer, o que ela acha que tem dentro de si, e assim o sujeito vai se escutando, se transformando a partir da experiência. É uma espécie de aventura: a psicanálise como experiência de descoberta. E por isso Lacan radicaliza aquilo que já estava presente em Freud, da psicanálise como pesquisa do inconsciente e como ato poético, não no sentido de que a gente vai fazer poesia, mas a de que a gente vai reinventar a linguagem e, ao fazê-lo, reinventar quem é que nós somos, de onde viemos, para onde vamos. E o mais incrível dessa experiência lacaniana é justamente esse potencial de refazer a própria história, que tem de ser recriada, e articulá-la com os desejos futuros, tornando o presente muito decisivo. Isso é bastante radical e apropriado para a nossa época, penso eu.
Autores como Paul B. Preciado fizeram críticas a Lacan, colocando-o como um representante do “heteropatriarcado branco”. Como lidar com esses questionamentos? Essa crítica de Preciado é muito boa, e faz referência a um conjunto de premissas e paradigmas que a gente encontra dentro de muitas formas de psicanálise, inclusive o lacanismo. Não é exatamente uma novidade, mas o que causou toda a pirotecnia foi que essa crítica em tom de denúncia foi feita num grande encontro de psicanalistas. Mas tudo isso caracteriza a psicanálise justamente como uma forma viva de saber e de tratar os sofrimentos que vai se transformando historicamente. Essa ideia de renovação crítica do vocabulário e do léxico da psicanálise é algo pelo qual o próprio Lacan lutou e debateu no âmbito institucional. E ele criou um novo modelo de formação de psicanalistas e trouxe inovações como seminários abertos e gratuitos que até contribuíram para que fosse expulso da associação francesa. Tudo isso combina com a crítica do patriarcalismo, do racismo, da desigualdade social… E não é à toa que tantos teóricos e críticos contemporâneos – de Foucault a Judith Butler e Achille Mbembe – vão mobilizar noções lacanianas para construir seus modelos. Preciado não escapa a essa ideia. Agora, isso tem uma distância muito grande com a denúncia que traz, que é a de ideias conservadoras que aparecem no lacanismo sobre a situação da população trans.
É possível resolvê-la? Isso demanda pesquisa. E inclusive nos remete a um processo meio parecido com o da ciência. Você recebe e absorve as críticas para poder se transformar e responder a elas. Não é que uma colocação assim destrói a psicanálise. Foi o que ocorreu com Deleuze e Guatari, a esquizoanálise, e tantos outros movimentos, ao promover críticas mais internas ou mais externas à disciplina. Elas mostram que a psicanálise é filha do seu tempo, como qualquer outro saber. E trazem uma comprovação de que como a psicanálise deveria se afastar do raciocínio dogmático ou de seita. Muitos psicanalistas responderam a essa crítica de Preciado. Uns de forma mais reativa, outros trabalhando as questões da teoria queer e do feminino. No fim, você tem uma comunidade de conservadores e progressistas, como em todos os agrupamentos humanos.
Ler, entender e reproduzir Lacan definitivamente não é fácil. Até que ponto tanta gente que se diz “lacaniana” por aí honra a proposta original do pensador francês? De fato, a proposta teórica e clínica de Lacan é muito exigente. Demanda um processo de formação, inclusive pessoal, e um apuro no fazer clínico, além de uma expectativa de assimilação de conceitos que vai muito além de um curso básico ou universitário. Lacan vai convidar o analista para uma vida de estudos, e nisso ele foi muito coerente com a própria experiência de Freud. Porque, por mais que tenha gente falando que algumas ideias de Freud estão passadas, enquanto outras, não, o inegável é que a sua obra e a invenção da psicanálise representam um lindo processo de pesquisa e descoberta. E a gente devia repetir essa redescoberta no nível da clínica e da formação dos analistas. Mas é um processo exigente, e que se choca um pouco com o modelo brasileiro contemporâneo. Porque temos uma teoria e uma prática de elite, mas não elitista, que também mostra como pode ser inclusiva. Então você vê um crescimento exponencial da psicanálise, inclusive a lacaniana, no espaço público e digital e muita gente questiona até que ponto isso é psicanálise mesmo, porque existem formações precárias e apressadas, algumas no limite da impostura.
E isso tem se refletido na apropriação brasileira de Lacan? Lacan tem uma proposta de formação bastante revolucionária, de baixa institucionalidade e controle, mas ao mesmo tempo longa e muito crítica consigo mesmo. Então é difícil coordenar tudo isso em meio a uma revolução cultural, como a gente vive. Há uma abertura na visão de Lacan que ele mesmo não imaginava e que dá margem a essas apropriações. Esse baixo nível de institucionalidade, no sentido de controlar e dizer quem é e quem não é analista, nos ajuda a entender por que essa forma de psicanálise se disseminou tanto por aqui, inclusive em suas variações imperfeitas e imposturas. E, quando você junta isso ao movimento neoliberal, é como se tivesse uma festa estranha com gente esquisita, como diria Legião Urbana. Mas eu ressaltaria que é uma festa. Uma festa a céu aberto, uma rave lacaniana que tomou conta do país dos conflitos psíquicos, das contradições, das divisões e das desigualdades. Nesse aspecto, o lacanismo tem tudo a ver com a brasilidade.
Flávio revela reação de Tarcísio após anúncio de disputa à Presidência
Lula ganha um novo presente da direita, mas o futuro indica um desafio quase impossível
Virginia vira piada na Grande Rio ao desfilar colada no professor de samba
‘Dark Horse’, filme sobre Bolsonaro, tem primeiras cenas divulgadas; assista ao teaser
‘Senador da Swat’, Marcos do Val amarga a lanterna em disputa para renovar mandato







