A pandemia e a personalidade de cada um
Artigo mostra que estresse prolongado pode nos tornar menos criativos, autoconfiantes e comunicativos
Os super-heróis do universo dos quadrinhos, muitas vezes, combinam elementos da ficção científica com traços muito humanos. Um exemplo interessante é o incrível Hulk, personagem dos Estúdios Marvel criado pelos norte-americanos Stan Lee e Jack Kirby. Típico da Guerra Fria – em que o temor de ataques com bombas atômicas estava muito presente –, o Hulk é produto não só de uma dose de raios gama como do descontrole emocional de seu alter ego, o cientista Bruce Banner. Sempre que exposto a níveis muito altos de estresse, ele se transformava no gigantesco monstro verde, tornando-se um risco à segurança. O estresse aqui é o foco: ele induz mudanças em nossa personalidade?
Bem, vivemos ainda sob a que talvez seja a situação de estresse mais intensa de nossas vidas: a pandemia de covid-19. Ninguém, óbvio, seja qual for a carga de estresse, vai se converter num ser alimentado por raiva e radiação. Mas, brincadeira à parte, os efeitos do estresse prolongado certamente têm poder para causar mudanças de personalidade. E um artigo, publicado em outubro no periódico especializado Plos One, buscou estudar isso.
O artigo traz os resultados de um estudo que investigou os efeitos que o isolamento forçado pela pandemia provocou em pessoas com menos de 30 anos de idade. Foram avaliados cinco fatores (neuroticismo, extroversão, abertura, amabilidade e conscienciosidade), que mostram como as pessoas lidavam com estresse; que efeitos o período da pandemia teve sobre a criatividade; os efeitos sobre a capacidade de se comunicarem; sobre a autoconfiança; e sobre a responsabilidade e organização de cada um.
O estudo usou dados do Understanding America Study (Estudo Compreendendo a América), que foi criado em 2014 e, desde então, reúne dados de cerca de 7 mil pessoas que responderam um questionário. As respostas usadas foram de 2020 – ou seja, mais dos primeiros momentos da pandemia – e de 2021/22 – quando o isolamento já fazia as pessoas ficarem em casa há algum tempo. Os dois conjuntos de dados foram comparados com o pré-pandêmico.
O que se verificou foi que, no início da pandemia, houve apenas uma ligeira diminuição no neuroticismo – que é a tendência a experimentar facilmente emoções negativas ante eventos comuns da vida -, sem mudanças assinaláveis nos demais critérios avaliados. Já no período mais avançado da pandemia, o neuroticismo não mostrou grande oscilação – mas os demais fatores apontaram perda em relação ao pré-pandemia. Segundo a pesquisa, essas variações foram equivalentes a cerca de uma década de mudança normativa de personalidade. “Os adultos mais jovens mostraram maturidade interrompida na medida em que (…) diminuíram em amabilidade e consciência”, diz o texto. Se os efeitos persistirem, conclui o texto, fica sinalizado que eventos estressantes em toda a população podem vir a afetar levemente a trajetória da personalidade, especialmente em adultos mais jovens.
De alguma forma intuitiva ao menos, era possível supor que a sociabilidade das pessoas não passaria incólume pelos efeitos da pandemia. Viver em sociedade não é uma habilidade inata: nós temos que aprender a fazer isso. A interação tem seus códigos que se leem melhor no contato direto – e mais que isso: por meio de telas e em reuniões virtuais, certas normas sociais sofrem transformações. Ficar afastado disso numa fase em que se está lidando com ansiedades que a vida em grupo ajuda a calibrar pode deixar as pessoas sem esse aprendizado. Ainda estamos por ver estudos desse tipo que mostrem qual efeito a experiência da falta de convívio entre as crianças poderá ter causado.
O caso é que a pandemia impôs a necessidade de, ao menos por um período, distanciar as pessoas. Afinal, havia um vírus letal em circulação contra o qual não havia ainda vacinas. Mas, como disse a OMS (Organização Mundial de Saúde) em setembro, podemos estar com o fim da pandemia de covid-19 próximo (embora, claro, não haja nenhuma data específica ainda em vista). A vida tem voltado a ritmos muito mais “normais”, parecidos com o pré-pandemia. Cuidados ainda se impõem, mas estamos muito melhores hoje que há um ano ou pouco mais atrás. A volta gradual a uma realidade “mais normal” poderá aos poucos ir ampliando nossa capacidade de equilibrar as tensões com que lidamos no do dia a dia. Como disse o escritor norte-americano Frederick Douglass, uma pessoa “pode esculpir suas circunstâncias, mas suas circunstâncias também irão esculpi-la”.