Marcelo Rosenbaum lança instituto para ajudar comunidades pobres a ter renda e preservar sua história
Experiência no sertão do Piauí vira livro, documentário e modelo para transformar o artesanato em peças de design capazes de beneficiar os moradores locais
No sertão do Piauí, o designer Marcelo Rosenbaum encontrou o laboratório perfeito para testar até que ponto criar objetos belos e funcionais podem beneficiar comunidades carentes. Na pobreza de Várzea Queimada, ele encontrou a oportunidade de traduzir o conhecimento local em peças para serem vendidas e, assim, criar uma fonte de renda para quem vive quase sem perspectiva. Dessa experiência surgiu o Instituto A Gente Transforma, para replicar este modelo em outros locais do país. Na esteira, acabam de ser lançados um livro e um documentário sobre o projeto piauiense, iniciado em 2012.
Em conversa com o blog Cidades sem Fronteiras, Rosenbaum contou mais sobre o que aprendeu nesse intercâmbio e de como o design pode exercer uma função social. Confira na entrevista abaixo abaixo:
1) Por que a escolha de Várzea Queimada para desenvolver o projeto?
O Design Essencial e A Gente Transforma foi um aprendizado construído aos poucos. Começou em 2010, no Parque Santo Antônio, comunidade urbana de São Paulo, quando o A Gente Transforma tinha uma proposta de usar as cores para iniciar um processo de aproximação com a comunidade. No meio deste processo, desenvolvemos uma coleção de bolsas com as mulheres da comunidade. O projeto foi além das cores, tocou e mudou as pessoas do lugar, da equipe e o público. Mas não adiantava promover a transformação das favelas das grandes cidades, quando elas são apenas reflexos da falta de oportunidades das regiões do Brasil profundo. Terminado o projeto no Parque Santo Antônio, fiquei ainda mais convencido do nosso desafio. Olhei o mapa do Brasil e buscando as manchas com o menor Índice de Desenvolvimento Humano do país cheguei à Chapada do Araripe, no estado do Piauí. Através de um levantamento de comunidades com vocação para o artesanato, feito pelo Sebrae Piauí, chegamos a Várzea Queimada. As dificuldades nesse lugar eram tão grandes, que se tornaria uma espécie de incubadora da própria metodologia.
2) Qual era o objetivo inicial?
O A Gente Transforma nasceu para validar e valorizar potenciais, talentos e saberes das comunidades do Brasil profundo, para revelar oportunidades dentro e fora desses grupos. São estimulados a a criar alianças e abrir espaço para a expressão criativa, valorizando produtos que representem sua cultura e conhecimento. Com isso, além de autoestima e dignidade, abre-se um novo mercado, com perspectiva de renda. Essa autonomia lhes dá liberdade.
Desde a primeira vez, vi e senti que Várzea Queimada poderia ser a grande oportunidade de mostrar para o Brasil e para o mundo um conjunto de belezas, tanto em forma de produto quanto de conceito. Porém, a comunidade não reconhecia o valor de seus saberes e fazeres. Visitando a casa da senhora mais idosa da comunidade vimos um cesto incrível, o bogoió, confeccionado há muitas gerações para transportar mantimentos da roça. Para ela, o cesto não valia nada; para nós, foi a inspiração de toda a coleção. Estava tudo lá. Só faltava especificar as formas de processo. Com os homens, escultores de borracha, propusemos a troca do chinelo por joias de borracha de pneu com base na paisagem: mandacaru, milho, caju etc.
3) E a partir daí, que resultados foram colhidos com o projeto?
Lançamos as coleções na Feira de Design de Milão, envolvemos a top model Carol Trentini em uma campanha muito impactante e fomos tema do São Paulo Fashion Week. Participamos de duas feiras importantes de design no Brasil e vendemos a coleção para lojas de design e decoração nacionais e internacionais. O sucesso com a venda das peças se reverteu em faturamento, que vai integral e diretamente para a comunidade, e gerou autoestima imediata.
Um segundo desdobramento foi interferir no fluxo de pessoas que deixavam Várzea Queimada para morar na favela do Parque São João, em São Paulo. Por uma dessas coincidências perfeitas, o Parque São João é vizinho do Parque Santo Antônio. Quando os moradores de Várzea Queimada deixavam o local, deixavam de conviver com sua cultura e perdiam os laços com sua família, suas histórias e suas raízes. Agora, após o A Gente Transforma, os jovens não querem mais sair de Várzea Queimada. Reverter esse processo, ampliando as oportunidades das pessoas em seu próprio contexto, possibilita mudar o Brasil. É um processo de sustentabilidade muito amplo.
4) Quais as principais lições você e sua equipe tiraram dessa convivência?
Muitas, mas principalmente que o design como processo é uma ferramenta para redesenhar relações, conectar pessoas, compartilhar ideias e contar histórias. Há locais onde á aparente escassez é um enorme potencial de desenvolvimento, que revela saberes ancestrais e muitas oportunidades.
5) Como surgiu e amadureceu a ideia de criar um instituto?
O Instituto A Gente Transforma nasce no momento em que nossa atuação como designers se integra com o nosso propósito. Não fazemos nada sozinhos, acreditamos na interdependência, esse é o sentido da sustentabilidade. O que fazemos é nutrir negócios que respeitem o indivíduo. Colocamos o design a serviço das pessoas.
A missão do Instituto é gerir o relacionamento com as comunidades, zelar pelos direitos de sua propriedade intelectual e repartir benefícios, gerando assim fluxo econômico e preservando o patrimônio cultural imaterial. Pode ainda articular parcerias com os setores público e privado, além de dialogar com universidades e outras iniciativas semelhantes no Brasil e no mundo.
6) Há uma tendência mundial em valorizar ações de design e arquitetura com apelo social. Quais os benefícios disso para a sociedade e para a profissão?
Ao longo da minha carreira surgiram algumas perguntas. Como o design pode servir a humanidade? Como o design orienta ideias que transformam o mundo? Como no Brasil, com tanta criatividade, pode ainda haver contextos de miséria mesmo com toda a sua riqueza cultural e criativa? Por outro lado, como andar pelo Brasil afora e não ver beleza em tudo?
Eu via beleza em todos os cantos do Brasil. Mais do que beleza, via riqueza potencial das tantas culturas, diversidade, saberes e expressões ainda desconhecidos, onde matérias primas, técnicas e talento eram peças desencaixadas. Ao mesmo, eu vinha de um mercado de design que servia a si mesmo e isso, aos poucos, se esvai de significado. O design que acaba em desenho, autoria, ideia ou o objeto em si fica vazio. Mas o design que é desígnio passa a ser ferramenta para desenhar e sonhar com um novo mundo. Uma ponte dessa interdependência e uma ferramenta a serviço das pessoas. Ganha outra dimensão.
Por Mariana Barros
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