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Augusto Nunes

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Valentina de Botas: O rosto machucado de Luiza Brunet

Homens covardes sempre se sentirão ameaçados pela beleza, inteligência e pela história de vida das mulheres com as quais se envolvem amorosamente.

Por Branca Nunes Atualizado em 30 jul 2020, 22h21 - Publicado em 5 jul 2016, 19h46

Eu a surpreendo pendurada em silêncio na xícara de café ralo sem açúcar contemplando um mundo e um tempo que meus sentidos só presumem. Segundos estendidos em que certo tipo de recato que meus pais me ensinaram impede a intromissão naquelas porções de vida interior traduzidos nos olhos da cabocla doce fixos no grifo do azulejo da cozinha logo acima do meu ombro. Da cor de mel, tão bonitos eles, mas não os fito; a discrição aprendida me faz simular distração e trato de lhe servir outro pedaço do bolo que preparei para o café no fim da tarde. Toco o braço dela com o cuidado de quem acorda um enfermo na hora de tomar o remédio. Mamãe ri e me mostra o ninho do silêncio: “Tu consegue, mulher faz coisa difícil mais fácil que homem. Velho confirmou que vem de escolta, bom: vai fazer o que vocês não podem. Deus te acompanhe. Beijo tuas mãos”.

O primeiro bilhete que recebera do marido é papai escrito: econômico, taxativo, suficiente. Intuindo que seria o último entre namoro, noivado e casamento, numa história de mais de 50 anos, mamãe plastificou o papel que documentava a mudança dela de Pernambuco para São Paulo, para onde o marido viera antes ajeitar trabalho e moradia; ela vinha numa viagem épica de 72 horas, de ônibus, com três bebês (eu e minhas irmãs, com idades entre 3 meses e 2 anos) e minha tia casada com o Velho, apelido de um tio que era velho como já eram velhos os sertanejos de 30 anos naquele Brasil profundo do final dos anos 60 e cujo código de honra obrigava que o mais forte cuidasse do mais vulnerável. Sim, mulheres – a fêmea humana – são fisicamente mais fracas do que homens (o macho humano).

Não, isso não as faz inferiores nem os faz superiores; isso é só mais uma das abençoadas diferenças entre nós. Tal nomenclatura vem esclarecer que me interessam aqui homens e mulheres reais, não essa coisa sem feromônio e de aparência indefinida habitante dos manuais vagabundos de sociologia que, com a tara da fanática desconstrução biológica do gênero, negam o aporte da biologia na identidade sexual. Um discurso encampado por setores brutos do feminismo, fazendo-se opressor, castrador, totalitário e vitimista-agressivo; com a gramática do ódio e a libido do ressentimento premeditado contra o macho. Amputa o feminino e quer submeter o masculino numa deformação que não combate o machismo e que atrapalha a necessária busca pelo reconhecimento dos direitos femininos.

Me interessa aqui o Adão do “Paraíso Perdido”, de Milton, que optou por abocanhar a maçã porque preferia seguir Eva no exílio da humanidade a viver ainda mais só dessa solidão que nos constitui, tornando inútil o Paraíso na antevisão do verso indagativo de Roberto Carlos – de que vale o paraíso sem amor? Meu pai cuidou da integridade física da mulher e das filhas não porque fosse este um papel construído culturalmente com base na divisão-biológica-de-papéis-numa-cultura-opressora; ele fez isso porque, sim, também a biologia o fez macho, portanto mais forte fisicamente do que a fêmea, condição que, desde a díade adão-e-eva, passando pelas savanas africanas para chegar a Pernambuco, capacitou o macho a cumprir uma função protetiva na garantia de perpetuação da espécie, mas também porque esse atavismo ou coragem física obrigatória evoluiu, pelo lado positivo da cultura, para a coragem moral necessária de defender os mais vulneráveis.

Uma demonstração do lado negativo é exibida no rosto machucado de Luíza Brunet, agredida pelo ex-namorado, o empresário Lírio Parisotto, que também quebrou quatro costelas da ex-modelo. A denúncia que deveria ser encarado como ato natural e obrigatório passa a ser um ato de coragem num contexto de afirmações covardes e especulações deslocadas, outra maldita vez, sobre a conduta da vítima: por que Luíza manteve uma relação abusiva e não se afastou nos primeiros sinais presumíveis? Por que provocou o ciúme do namorado? Ora, especular sobre as razões que a própria razão desconhece em relações amorosas não inverte os lugares de vítima e agressor; e homens covardes sempre se sentirão ameaçados pela beleza, inteligência e pela história de vida das mulheres com as quais se envolvem amorosamente.

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A repercussão do caso poderia ajudar a engrossar o combate sério pelos direitos femininos, mas a gestapo feminista prefere exercer a si mesma em ataques como aqueles à figura de Marcela Temer quando a primeira-dama apareceu numa reportagem como “bela, recatada e do lar”. Como se esta opção não fosse tão lícita como qualquer outra honesta, como se não houvesse mulheres imbecis, oprimidas e/ou opressoras que não são “bela, recatada e do lar”. Comprova-se que o feminismo faria muito mais pelas mulheres se militasse por vagas em creches para que elas tivessem onde deixar os filhos para trabalharem sossegadas (lembrando que uma das maiores expressões da dignidade é poder cuidar de si mesmo, do próprio sustento) do que se bifurcar em tentativas de se enfiar na cama para onde não foi chamado; patrulhando o tesão e investigando quem lavará a louça.

Meu pai era alto e forte, minha mãe é miúda; ele ficou muito vulnerável quando se tratou de um câncer, mamãe cuidou do marido acamado: somos todos vulneráveis, seres que caminhamos para o fim, todos podemos cuidar uns dos outros segundo as especificidades de quem cuida e do cuidado requerido. Para cuidarmos de quem amamos, basta amar; para cuidar de quem é vulnerável, basta não ser covarde. Com os olhos fixos num ponto invisível, pendurada à minha xícara de café forte, espreitava estes pensamentos para um texto eventual, quando mamãe toca meu braço: havia outro pedaço de bolo no meu prato.

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