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Augusto Nunes

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Valentina de Botas: Nem todo riso é alegria e nem toda lágrima é tristeza

O politicamente correto empobreceu o pensamento a tal ponto que um texto irônico tem exigido o aviso 'atenção, este texto contém ironias'

Por Augusto Nunes Atualizado em 30 jul 2020, 21h45 - Publicado em 25 set 2016, 23h25

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O vídeo de 6 minutos mostra o último jardineiro de Aleppo. Enquanto o açougueiro Assad faz da outrora bela cidade a antessala do inferno, o menino Ibrahim e o pai cultivam flores entre as ruínas de suas vidas. Apesar de tudo ou por causa de tudo, o jardineiro se lembra de agradecer a Deus o reflorescimento de uma plantinha que pensara ter fenecido. Pai e filho sorriem algumas vezes, mais o menino encantador, e com gravidade quando lembram clientes que morreram: nem todo riso é alegria, nem toda lágrima é tristeza e sorrimos não do fato de o mundo nos entristecer poderosamente, mas apesar de o mundo nos entristecer poderosamente.

Se me perdoam a abrupta mudança de paisagem, o Bolacha e o Biscoito são candidatos a vereador em duas cidades diferentes, não me lembro do nome delas, mas morri de rir quando vi as respectivas fotos numa só sob o título “a maior discussão do século será decidida nas urnas”. O sistema eleitoral brasileiro é de chorar, a calamidade vai das questões estruturais como o voto obrigatório e majoritário no lugar do facultativo e distrital, passando por todo tipo de gente safada que sonha fazer da atividade política um facilitador das próprias safadezas, até as circunstanciais como a miséria material e de informação de tantos eleitores. Mas eu ri daquilo que, nessa calamidade, é engraçado: respeito muito minhas lágrimas, ainda mais minha risada.

Com uma proposta modesta para evitar que os filhos se tornem um fardo para a sociedade e para os pais nas famílias mais pobres, acabar com a fome destas, evitar que as crianças pobres se tornem criminosos ou se prostituam, Jonathan Swift chocou quem entendeu e quem não entendeu sua sugestão de que os bebês de um ano de idade e os maiorzinhos mais tenros nascidos na miséria virassem uma opção alimentar dos famintos na Irlanda do século 17 que vivia um período social tristonho. Algumas pessoas que entenderam o sarcasmo corrosivo do panfleto ficaram chocadas porque a crueza de Swift as fez transitar do absurdo da proposta para a reflexão quanto à gravidade da situação descrita; outras porque acharam demais brincar com algo assim, numa conveniente deformação da percepção que dá mais relevo à abordagem do real do que a ele. Aquelas que não entenderam a ironia ficaram estacionadas no absurdo da proposta, desviando-se do drama real e preferiram combater o mensageiro.

Especialistas do desenvolvimento cognitivo situam o início da apreensão da ironia entre os 5 e os 7 anos de idade. Claro que a sofisticação da ironia como recurso linguístico apresenta uma complexidade que será traduzida conforme a robustez e a maturação intelectuais, amplamente variáveis entre os indivíduos, mas a estupidez dos irlandeses impermeáveis à ironia de Swift e a sisudez dos brasileiros nos últimos 10 anos exemplificam que a percepção da graça e a produção do humor também estão à mercê do social.

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Entre nós, o politicamente correto empobreceu o pensamento com a consequente deterioração do humor a tal ponto que um texto irônico tem exigido o aviso “atenção, este texto contém ironias”, na melancólica constatação de que fazer e entender humor ou ironia são competências em que a era da mediocridade deixou sequelas longevas. Lula e Dilma, cada um a seu modo, sabotaram o debate público com falsas questões e soluções ilusórias. Ele, com o chulismo e a truculência do conjunto de suas falas, disfarçadas de uma informalidade com pretensa comicidade mediante metáforas de graça e pertinência miseráveis; ela, com a carranca soldada à alma, tentava fazer incivilidade e parvoíce parecerem competência.

Os dois embusteiros, figuras autoritárias e, portanto, paranoicas, impregnaram tudo com o mau humor característico de governantes que desconhecem o salutar e inteligente exercício da autoironia também porque se dão muita importância. Ora, pouca coisa é mais ridícula e prato cheio para o humor do que gente que se dá muita importância, o que se aplica também a países. A adesão dos humoristas a favor e a detestável patrulha politicamente correta, numa realidade de degradação econômica, intelectual e moral, tornam a ironia e o riso ainda mais necessários – e, contraditoriamente, possíveis – como forma de resistência.

O grande texto de J.R.Guzzo que constata mais uma mazela da era lulopetista não nos convida a rir o riso dos idiotas ou dos levianos, cantar o canto da cigarra alheia ao inverno que chegou ou a celebrar a tal malemolência de difusa brasilidade ineficaz em reduzir um povo inteiro e heterogêneo a um único atributo; ele nos convida a refletir sobre o modo como estamos olhando para tudo isso.

Sem a tragédia síria, mas com problemas multiplicados da Irlanda de 400 anos atrás que ultrapassam a controvérsia entre bolacha e biscoito, é lúcido admitir a perda de certo jeito de sorrir que tínhamos, como diz o poeta, mas, levando a lucidez às últimas consequências, percebamos que nem todo riso é alegria e nem toda lágrima é tristeza.

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