Sudão, onde a vida tem destino incerto
TEXTO PUBLICADO NO JORNAL O GLOBO EM 1º DE JULHO DE 2011 Nicholas D. Kristof * A capital mundial de crimes contra a Humanidade este mês provavelmente não é a Líbia ou a Síria. São as Montanhas Nuba, no Sudão, de onde surgem relatos do que parece ser uma viciosa campanha de limpeza étnica, assassinatos […]
TEXTO PUBLICADO NO JORNAL O GLOBO EM 1º DE JULHO DE 2011
Nicholas D. Kristof *
A capital mundial de crimes contra a Humanidade este mês provavelmente não é a Líbia ou a Síria. São as Montanhas Nuba, no Sudão, de onde surgem relatos do que parece ser uma viciosa campanha de limpeza étnica, assassinatos e estupros.
Em seu esforço para evitar testemunhas, o governo sudanês impediu o acesso de organizações humanitárias e ameaçou derrubar helicópteros da ONU. Soldados sudaneses chegaram a deter quatro capacetes azuis da ONU e submetê-los a um falso esquadrão de fuzilamento. Um relatório da ONU diz que as autoridades sudanesas envergam uniformes do Crescente Vermelho — a versão islâmica da Cruz Vermelha — para ordenar aos refugiados que se afastem do complexo das Nações Unidas. Eles são então levados a um estádio na cidade de Kadugli, onde seu destino é incerto.
Trabalhadores humanitários ocidentais foram obrigados a fugir e há relatos de que tropas governamentais e milícias árabes apoiadas pelo governo estão caçando e matando sistematicamente integrantes do grupo étnico Nuba, de cor negra.
Um ocidental com larga experiência no Sudão relatou-me, por e-mail, “execuções porta a porta de civis inocentes e indefesos, muitos com a garganta cortada por forças especiais de segurança”. Ele não quer ter seu nome revelado por temer perder o acesso aos locais onde isso está acontecendo.
O reverendo Andudu Elnail, um bispo episcopal nas Montanhas Nuba, disse-me que o governo sudanês tem tido como alvo muitos cristãos da região. As forças sudanesas queimaram sua catedral, afirmou o bispo Andudu, que está temporariamente nos EUA, mas permanece em contato diário com os moradores da área. “Eles estão matando pessoas com instrução, especialmente os negros, e não gostam da igreja”, declarou. Mulheres são estupradas rotineiramente, acrescentou o religioso, para quem o número de mortos está na casa de alguns milhares em todo o estado sudanês de Kordofan do Sul.
Não se trata de uma guerra religiosa, porque muitos moradores das Montanhas Nuba são muçulmanos e também têm sido vítimas de ataques — outro dia, uma mesquita foi bombardeada. Os militares têm jogado bombas em mercados e poços de água de aldeias.
A pista de pouso que eu usei quando visitei as Montanhas Nuba foi bombardeada para evitar que organizações humanitárias enviem suprimentos de emergência; os mercados que visitei estão agora desertos. Pelo menos 73 mil pessoas fugiram de suas casas, segundo a ONU. Uma rede de pessoas corajosas, virtualmente em toda parte, tem secretamente tirado fotos, transmitindo-as para organizações de direitos humanos no Ocidente. Meu computador foi inundado por fotos de crianças sangrando, atingidas por estilhaços de bombas. Samuel Totten, que estuda genocídios para a Universidade de Arkansas, Fayateville, visitou as Montanhas Nuba há um ano para reunir material sobre assassinatos em massa pelo governo sudanês nos anos 90. Agora, diz, começa a acontecer tudo de novo.
“Vejo a comunidade internacional hesitar, enquanto o povo de Nuba está sendo morto e reina a impunidade”, afirma o professor Totten.
O governo sudanês firmou um arcabouço de entendimento que pode ser um passo à frente para pôr fim à violência em Kordofan do Sul, mas não houve acordo sobre cessação das hostilidades. O Sudão tem uma longa história de assinar acordos e depois rompê- los (tanto no Norte quanto no Sul). O país se prepara para se dividir em dois no dia 9 de julho, quando o Sudão do Sul emergirá como uma nação independente depois de décadas de guerra intermitente entre Norte e Sul. As Montanhas Nuba permanecerão no Norte quando o Sul se separar, mas muitos de seus habitantes ficaram ao lado do Sul na guerra e ainda servem numa força militar rebelde escondida nas montanhas.
A maior parte da violência em Nuba foi protagonizada pelos árabes do Norte, mas há relatos também de rebeldes atacando civis árabes. Há risco de a violência alcançar o estado vizinho do Nilo Azul e acabar levando a uma guerra total Norte-Sul, embora os dois lados queiram evitá-lo. É crítico que a ONU mantenha sua presença. O presidente do Sudão, Omar Hassan al-Bashir, indiciado por genocídio em Darfur, está agora em visita à China, e os líderes chineses precisam insistir com ele que pare com a matança de civis e permita que a ONU funcione. Os apelos dos habitantes de Nuba hoje parecem um eco angustiante daqueles de Darfur há oito anos. A Bolsa Samaritana, uma organização cristã que trabalha há tempos na região, disse ter recebido uma mensagem de um pastor: “Com pesar, informo que a igreja nova foi queimada. Perdemos tudo. A casa onde mora minha equipe foi saqueada e os escritórios, queimados. Muitos fugiram daqui, alguns ficaram. Não há água nem comida”.
*Nicholas D. Kristof é colunista do The New York Times