O procurador que encontrava um culpado por semana finge que não vê bandidos há oito anos e meio
Até janeiro de 2003, o procurador Luiz Francisco Fernandes de Souza encontrava um pecador por semana. Desde o dia da posse do companheiro Lula, não enxergou mais nenhum. Aos 49 anos, faz oito e meio que anda sumido do noticiário político-policial que frequentou com assiduidade e entusiasmo enquanto Fernando Henrique Cardoso foi presidente. Continua solteiro, […]

Até janeiro de 2003, o procurador Luiz Francisco Fernandes de Souza encontrava um pecador por semana. Desde o dia da posse do companheiro Lula, não enxergou mais nenhum. Aos 49 anos, faz oito e meio que anda sumido do noticiário político-policial que frequentou com assiduidade e entusiasmo enquanto Fernando Henrique Cardoso foi presidente. Continua solteiro, mora na casa dos pais, pilota o mesmo fusca-85, enfia-se em ternos amarfanhados que imploram por tinturarias e não usa gravata. A fachada é a mesma. O que mudou foi a produtividade.
Se o que aconteceu na Era da Mediocridade tivesse ocorrido na Era FHC, Luiz Francisco estaria encarnando em tempo integral, feliz como pinto no lixo, a figura do mocinho disposto a encarar o mais temível vilão. O Luiz Francisco reciclado quer distância de barulhos. Enquanto cardeais da igreja principal e sacerdotes do baixo clero multiplicam em ritmo de Fórmula 1 o acervo nacional de crimes, delitos, contravenções e bandalheiras em geral, ele permanece em sossego. Enquanto o país que presta pede cadeia para os quadrilheiros, ele providencia mais pedidos de licença remunerada. Todos são prontamente atendidos.
Nascido em Brasília, ex-seminarista da Ordem dos Jesuítas, ex-bancário, ex-sindicalista, Luiz Francisco cancelou a filiação ao PT em 1995, 20 dias antes de tornar-se procurador regional do Distrito Federal. ”A militância é incompatível com o cargo”, explicou. A prática trucidou a teoria: nunca militou com tamanha aplicação. Convencido de que sobrava bandido e faltava xerife, não respeitava sequer fins de semana, feriados ou dias santos. “Trabalhar é minha grande diversão”, repetia entre uma e outra denúncia.
Luiz Francisco garante que ganha pouco mais de R$ 7 mil por mês. Até que desistisse da candidatura a operário-padrão, mereceu os R$ 19 mil prometidos como salário inicial a um procurador do Distrito Federal. Nenhum outro conseguiria acusar tanta gente durante o dia e, à noite, escrever dúzias de parágrafos do livro que exigira 24 anos de pesquisas. Publicado em 2003 pela Editora Casa Amarela, “Socialismo, Uma Utopia Cristã” pretende provar, segundo o autor, que “até a metade do século XIX o socialismo exibia uma clara inspiração religiosa, especialmente cristã”. Tem 1152 páginas.
Deveria ter sido menos prolixo. Intrigados com o mistério da multiplicação das horas do dia, outros procuradores e todos os inimigos examinaram com mais atenção a papelada que jorrava da sala de Luiz Francisco. Aquilo não fora obra de um homem só, informaram as mudanças de estilo, a fusão de trechos corretamente redigidos com atentados brutais ao idioma, o convívio promíscuo entre substantivos em maiúsculas e adjetivos em minúsculas. E então se descobriu que o inquisidor incansável frequentemente assinava ações, denúncias e representações que já lhe chegavam prontas, enviadas por interessados na condenação de alguém.
Decidido a atirar em tudo que se movesse fora do PT, acabou baleando com denúncias fantasiosas vários inocentes. Nenhum foi tão obsessivamente alvejado quanto Eduardo Jorge Caldas Pereira, secretário-geral da Presidência da República no governo Fernando Henrique. Em 2009, o Conselho Nacional do Ministério Público reconheceu formalmente que Eduardo Jorge, enfim absolvido das denúncias improcedentes, foi perseguido por motivos políticos e condenou o perseguidor a 45 dias de suspensão.
Em vez de provar que pelo menos uma das numerosas acusações a Eduardo Jorge fez sentido, Luiz Francisco prefere alegar que o caso está prescrito. Como violou a legislação para obedecer aos mandamentos da seita petista, recorre ao calendário gregoriano para arquivar a história que o devolveu ao noticiário no papel de culpado —pela segunda vez desde o começo da superlativa temporada de férias. A primeira está completando cinco anos.
Em 2006, o procurador que se dispensou de procurar criminosos foi procurado pelo colombiano Francisco Colazzos, o “Padre Medina”, procurado pela Justiça do país onde nasceu. O foragido apresentou a Luiz Francisco as credenciais de embaixador das FARC e pediu ajuda para escapar da cadeia. Celebrada a aliança entre o ex-sacerdote acusado de homicídio e o ex-seminarista que nunca viu um pecador do lado esquerdo, renasceu o ativista fora-da-lei, que ensinou ao parceiro a arte de safar-se de investigações policiais. Os truques só conseguiram retardar a prisão.
O protegido esperava na gaiola o julgamento do pedido de extradição encaminhado pela Colômbia ao Supremo Tribunal Federal quando o protetor foi à luta. Embora não tivesse nada a ver com o caso, entrou com uma ação judicial para que Colazzos fosse devolvido à Polícia Federal. A solicitação foi encampada sucessivamente pelo Ministério Público, pela Polícia Civil e pelo juiz da Vara de Execuções Criminais, Nelson Ferreira Junior, antes de esbarrar no ministro Gilmar Mendes.
Admoestado pelo então presidente do STF, publicamente e com aspereza, Luiz Francisco só escapou de castigos mais severos porque o Planalto nunca deixa de socorrer companheiros aflitos. Dois meses depois da tentativa de obstrução da Justiça, o governo promoveu Colazzos a guerrilheiro, concedeu-lhe asilo político e arrumou emprego para a mulher. Sem alternativa, o STF devolveu-o a liberdade.
O que mais andou fazendo Luiz Francisco para matar o tempo?, quis saber a coluna em junho passado. Uma funcionária da Procuradoria informou que não seria possível encontrá-lo. Em lugar incerto e não sabido, está gozando de mais um período de descanso remunerado.
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