O dia em que bebi com Jânio (fim)
Última parte O golpe de misericórdia Ele cambaleou, exulto ao ouvir de dona Eloá que o marido assinara o cheque na linha da data e preenchera o espaço da assinatura com o dia, o mês e o ano do duelo em curso no Guarujá. Resolvo acelerar o ritmo dos golpes e partir para a contra-ofensiva infiltrando […]
Última parte
O golpe de misericórdia
Ele cambaleou, exulto ao ouvir de dona Eloá que o marido assinara o cheque na linha da data e preenchera o espaço da assinatura com o dia, o mês e o ano do duelo em curso no Guarujá. Resolvo acelerar o ritmo dos golpes e partir para a contra-ofensiva infiltrando na conversa temas que Jânio Quadros considera irritantes. A história da renúncia, por exemplo. Meio mundo ainda não entendeu aquilo, provoco. Está arrependido do que fez?
─ Não, não e não ─ três esquivas antes do contragolpe. ─ É que, neste país, ninguém renuncia nem ao cargo de síndico. É natural que muitos brasileiros tenham dificuldade para entender gestos de grandeza e desprendimento.
Gastone enche gentilmente meu copo. Ataco pelo flanco com miudezas que o ex-presidente sempre achou excessivamente fúteis, mesquinhas demais para merecerem tempo e atenção de um estadista. Gosta das novelas da Globo? Prefere qual horário? Continua apreciando faroeste americano? Jânio vai respondendo com tiradas de repentista e imagens amalucadas. Nada abala o humor do meu oponente. Nem ouvir o editor de Política da revista Veja, que deveria estar lá para tratar de coisas sérias, querendo saber se ele sabe dançar.
─ Não, não sei… ─ mumura no tom nostálgico simulado para espantar quem espera ouvir reminiscências da juventude com a comparação. ─ Sinto-me uma centopéia de 98 pernas.
Por que não arredondou para 100?, fico intrigado. Vai ver uma centopéia tem exatamente 98 pernas. Mas chega de dança. Agora quero saber se acredita em disco-voador.
─ Sim, acredito ─ informa. ─ Eloá até já viu um em Cubatão.
Esqueço o desfile de irrelevâncias e fico procurando, calado, táticas mais eficazes. Jânio continua extraordinariamente loquaz. No fim do nono cálice, está falando das cinco cadelas que moram naquela casa quando dona Eloá aparece na porta vindo da direção de quem entra. O marido não vê quem acabou de chegar. Ela estende lentamente o braço até alcançar o lado esquerdo da mesa, pega a garrafa de vinho do Porto, recolhe com cuidado o objeto do sequestro e desaparece. Acompanho a manobra com o canto dos olhos e cara de paisagem. Dois minutos depois, enquanto explica por que a cadela Quinta-Feira é a preferida, Jânio vê que o cálice está no fim, avança a mão esquerda e, ao chegar lá, não acha nada. Interrompe a frase no meio e olha para o espaço subitamente vazio. Parece confuso.
─ Onde está a garrafa? ─ murmura com jeito de criança perdida no supermercado.
Não abro a boca nem sob tortura, decido. Vou ganhar por desistência, quem diria? Não importa se levaram o vinho sem o homem perceber, nem quem levou. Parou de beber, perdeu. A regra é clara. Jânio faz um minuto de silêncio pelo desaparecimento do vinho e repete a pergunta, agora com voz estridente e endereço definido.
─ Onde está a garrafa, Gastone?
O deputado aponta a cozinha com o polegar.
─ Vá buscá-la ─ ordena a primeira ênclise. ─ E trate de trazê-la ─ ameaça a segunda.
Gastone sai para cumprir outra missão. Logo chegam frases truncadas mas muito esclarecedoras: “não vou devolver”, “é o fim do mundo”, “chega uma hora que tem que parar”, “os moços estão bêbados também”. Torço por dona Eloá. Pedro Martinelli ressurge na janela. Jânio desta vez nem olha para o capuchinho que segue fotografando, só tem cabeça para o vinho que sumiu. Gastone reaparece com a garrafa sobre a cabeça e o mesmo sorriso de Bellini, Mauro e Carlos Alberto erguendo a taça Jules Rimet.
Jânio cumprimenta o aliado efusivamente. Pela primeira talagada, vai comemorar o resgate derrubando o décimo cálice. Está animadíssimo. Olhando para Jomar, pede ao “senhor jornalista” que anote e começa a a ditar:
─ O presidente Jânio Quadros vírgula depois de examinar detidamente o quadro partidário vírgula optou pelo PTB por ter feito uma constatação indesmentível dois pontos o PMDB é uma arca de Noé vírgula sem Noé ponto…
Único sóbrio no recinto, Jomar está anotando aplicadamente o que Jânio diz. Gastone continua bebendo quieto. Jânio faz uma pausa no ditado para providenciar o 11° cálice. Paro ou continuo?, hesito. Era hora de jogar a toalha. Mas encho o copo de novo. No primeiro gole, o Lincoln da estatueta e o Lincoln do busto me olham com ar de deboche. Percebo que ultrapassei o ponto de não-retorno. Jânio ergue o cálice como se estivesse brindando. Sorri como um campeão mirando o adversário nocauteado em pé.
Meu erro foi o sexto copo.
PANCADAS ABAIXO DA CINTURA
Meu erro foi o sexto copo, expliquei ao ouvir o humilhante “Eu não disse?” dito por Jomar Moraes na subida da Anchieta. Nunca a estrada de Santos teve tantas curvas. Lembrava que tinha capitulado na metade do copo. Jânio deu mais um gole. Lembrava vagamente que me despedi de Jânio e Gastone com voz pastosa e caminhei para o fusca com a dignidade possível. Dona Eloá estava na cozinha.
─ Sexto ou sétimo copo, tanto faz ─ disse Jomar. ─ Teu erro foi encarar a fera.
O sorriso superior de Pedrão Martinelli avalizou o parecer. Eu só queria que a Serra do Mar parasse de girar ao meu redor, chegar em casa e dormir. No dia seguinte, fui para prédio da Abril na Marginal do Tietê. José Roberto Guzzo, diretor de redação, estava fora naquela semana. Entrei na sala do diretor-adjunto Elio Gaspari tentando disfarçar a ressaca. Ele quis saber se tinha assunto para uma reportagem de capa. Tinha de sobra, respondi. E soltei o comentário como quem não quer nada.
─ O que o homem está bebendo é uma grandeza.
─ É mesmo? ─ Gaspari ficou curioso.
Contei o que Jânio tinha bebido, ele não acreditou. Sugeri que conferisse com Jomar. Achei irrelevante falar sobre os tragos que tomei. Jornalista não é notícia, tinha ouvido várias vezes na Veja. Gaspari resumiu num trecho da Carta ao Leitor a performance do campeão: 20 latas de cerveja, 6 copos de caipirinha e 11 cálices (dos grandes) de vinho do Porto. A reportagem ficou boa. A Carta ao Leitor repercutiu ainda mais. Fiquei sabendo que Jânio se irritou. Estava vingado.
Quero ver como ele vai se virar na quarta-feira, pensei. Era o dia do programa que tinha na TV Record. Falava o que queria. Mas vai ter de comentar o que a Veja publicou, calculei. Foi o que Jânio fez no primeiro minuto do primeiro bloco. Com um exemplar da revista na mão, queixou-se de que fora vítima de jornalistas irresponsáveis. E entrou na questão alcoólica disposto a golpear abaixo da linha da cintura.
─ Dizem que bebi! ─ escandiu as sílabas. ─ Pois não bebi, até por prescrição médica! Quem bebeu foram os jornalistas!
Fiquei espantado. Não é possível que ele estivesse desmentindo o desempenho admirável. Fez pior. Abriu a revista na página da Carta ao Leitor, a câmera fechou a lente, Jânio pôs o dedo indicador na foto e desfechou o golpe de misericórdia.
─ Vejam isto! Vejam quem está bebendo!
Para sorte de Jânio e para meu infortúnio, a foto que ilustrava a página era uma das que Pedro Martinelli fizera quando dona Eloá acabou de confiscar a garrafa de vinho e Gastone ainda não fora buscá-la. O cálice estava atrás do Lincoln do busto. Só aparecia o copo de uísque, circundado em vermelho pelo artista.
─ Aqui está o senhor jornalista com seu copo ─ desferiu o pontapé nas partes baixas. ─ Cadê a minha bebida?
Foi o segundo nocaute consecutivo. Perdi feio. Mas fui derrotado por um campeão.