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O assassino chamado Clemente era da Paz no sobrenome

Ele chegou da rua no começo da noite, hasteou-se diante do irmão mais velho sentado na poltrona da sala, esperou a pausa na leitura do jornal e recitou: “Fiz a minha opção político-ideológica definitiva. Sou marxista-leninista.” Desconcertou-se ao notar que a expressão do primogênito exibia a placidez de quem ouvira o caçula avisar que estava […]

Por Augusto Nunes Atualizado em 31 jul 2020, 16h53 - Publicado em 12 set 2009, 19h05

Ele chegou da rua no começo da noite, hasteou-se diante do irmão mais velho sentado na poltrona da sala, esperou a pausa na leitura do jornal e recitou: “Fiz a minha opção político-ideológica definitiva. Sou marxista-leninista.” Desconcertou-se ao notar que a expressão do primogênito exibia a placidez de quem ouvira o caçula avisar que estava de saída para tomar algumas no bar da esquina.

“Você já leu muita coisa sobre isso?”, perguntou em tom displicente o alvo da notícia formidável. “Li o necessário”, mentiu naquele outubro de 1968 o estudante de 19 anos que, em janeiro, trocara a cidade interiorana pelo Rio para cursar a Faculdade Nacional de Direito. “Não vai mais piorar a imagem do Brasil no Exterior?”, quis saber o irmão com um sorriso de Mona Lisa.

Pelo projeto original, a faculdade era só a primeira escala na trajetória que o levaria ao Instituto Rio Branco, depois ao Itamaraty e, se Deus ajudasse, à embaixada do Brasil em Paris. Com cara de ofendido, avisou que não queria nada com a aristocracia decadente, nem com a burguesia emergente. “O dever de um revolucionário é fazer a revolução e não tenho dúvidas sobre o que devo fazer na vida”, resumiu.

“Que bom!”, ouviu. “Tudo o que eu queria era ter menos de 20 anos e nenhuma dúvida. Estou com 25 e cheio delas”. Ambos em silêncio, só o caçula escutou o estrondo das interrogações soterrando o poço de certezas inaugurado horas antes. As 19 palavras induziram o revolucionário de 19 anos a passar quatro ou cinco dias flagelando-se com perguntas. As respostas o aconselharam, no fim de 1969, a recusar a adesão à luta armada. Só por isso não enveredou pela trilha à beira do penhasco.

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Quem começasse a percorrê-la, constatou-se na virada da década, teria de avançar até a chegada – ainda que não houvesse chegada. Quem tentasse desviar-se do caminho ou propor mudanças de rota estaria exposto aos castigos reservados pelo código penal da luta armada aos traidores, vacilantes ou desertores. Os julgamentos eram sempre sumários e os jovens, assombrosamente severos.

Márcio Leite de Toledo tinha 19 anos quando foi enviado a Cuba pela Aliança Libertadora Nacional, para fazer um curso de guerrilha. Ao voltar em 1970, tornou-se um dos cinco integrantes da Coordenação Nacional da ALN. Também com 19 anos, lá já estava Carlos Eugênio Sarmento Coelho da Paz. Em outubro, durante uma reunião clandestina, o quinteto de generais soube do assassinato de Joaquim Câmara Ferreira, que em novembro do ano anterior substituíra o chefe supremo Carlos Marighela, fuzilado numa rua de São Paulo. Márcio propôs uma pausa na guerra antes que fossem todos exterminados.

Não era a primeira vez que divergia dos companheiros, lembrou Carlos Eugênio. Desconfiado, decidiu que algo havia por trás daquilo. Em duas horas, convenceu-se de que o dissidente estava prestes a traí-los e entregar à polícia o muito que sabia. Em dois dias, convenceu o restante da cúpula a subscrever a dedução. Com o endosso dos companheiros, montou o tribunal revolucionário, propôs a sentença de morte e ajudou a executá-la.

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Convidado para uma reunião de rotina com os carrascos, Márcio saiu para o encontro com a morte, no centro de São Paulo, no fim da tarde de 23 de março de 1971. Antes de sair do apartamento onde se escondia, o condenado escreveu que “nada o impediria de continuar combatendo”. Não podia imaginar que seria impedido por oito tiros.

O assassino hoje sessentão admite que o crime foi “um erro”, mas não se arrepende do que fez. Na guerra, explica o justiceiro, coisas assim acontecem. Depois do crime, ele se tornou muito respeitado pelos companheiros, que o conheciam pelo codinome talvez sugerido pelo Paz do sobrenome: Clemente.

Neste fim de semana, o ministro Tarso Genro voltou a defender a revisão da Lei da Anistia. Os parentes de Márcio Leite de Toledo, que vivem em Bauru, esperam que seja efetivamente ampla, geral e irrestrita. Tarso divide o Brasil dos anos 70 entre comparsas da ditadura e heróis da resistência, Como nunca abriu a boca sobre o caso, não se sabe se o jovem assassinado figura na ala dos sergios fleurys ou no bloco dos cesares battistis. Carlos Eugênio é companheiro, claro. Tem todos os atributos necessários para envelhecer em sossego numa assessoria especial do Ministério da Justiça.

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