Miragem na linha
Texto publicado na VEJA desta semana J.R. Guzzo Uma das maravilhas que o Brasil tem diante de si neste momento é o trem-bala. Que outro prodígio poderia competir com ele? Como o personagem da canção Funiculì, Funiculà, que promete qualquer coisa para levar a namorada até o alto do Vesúvio pelo funicular que hoje não […]
Texto publicado na VEJA desta semana
J.R. Guzzo
Uma das maravilhas que o Brasil tem diante de si neste momento é o trem-bala. Que outro prodígio poderia competir com ele? Como o personagem da canção Funiculì, Funiculà, que promete qualquer coisa para levar a namorada até o alto do Vesúvio pelo funicular que hoje não existe mais, os animadores do trem-bala descrevem os benefícios espantosos que o atual governo acaba de nos dar com mais essa realização. Na canção, nosso herói jura à sua Nanninè que o fogo do vulcão não sai correndo atrás de ninguém. O bondinho sobe ao topo, garante ele, com a rapidez do “vento”. Lá de cima da montanha ela vai ver até a “França”, ou mesmo a “Espanha” – isso para não falar na Ilha Prócida, que fica ali mesmo.
Aqui, já se dá como certo que ninguém precisará levar mais de oitenta minutos para ir do Rio de Janeiro a São Paulo, chispando a 280 quilômetros por hora ao longo dos 500 quilômetros, ou algo assim, do percurso. Com mais 24 minutinhos se chega a Campinas. Entre uma ponta e outra, o trem-bala pode fazer paradas nas cidades de Resende, ou Barra Mansa, ou Volta Redonda, mais Aparecida, São José dos Campos e até Jundiaí. Ainda não dá para saber o custo; a conversa começou nos 33 bilhões de reais e já está nos 40, mas acena-se com dinheiro privado para pagar a fatura, e se faltar o BNDES está aí justamente para essas coisas. No palavrório de palanque, em suma, é a última palavra em matéria de Brasil Grande. E na vida real? O que temos, aí, já é puro uísque paraguaio.
O trem-bala é uma lição perfeita de como governar um país e levar adiante uma campanha eleitoral através da fabricação, divulgação e venda de fantasias – ou, mais exatamente, de como fazer política com a utilização consciente do embuste em estado puro. Trata-se de mercadoria falsificada, logo de cara, porque o mundo oficial apresenta o Trem de Alta Velocidade como uma conquista nunca antes vista neste país; só que não há trem nenhum, de nenhuma velocidade, alta ou de qualquer outro tipo. Não há um metro sequer de trilho no chão. Nem poderia haver, pois não há um projeto de engenharia para a linha. Não se sabe nem mesmo por onde, exatamente, o trem vai passar, ou em que lugares vai parar. Sem isso não dá pra saber quantas e quais propriedades serão desapropriadas. Sem essa informação não se pode calcular quanto será gasto em desapropriações. Sem esse cálculo, enfim, ninguém consegue dizer qual será o custo final da coisa. Mas e daí? Para o governo, isso é tudo miudeza.
O que interessa, a menos de dois meses da eleição, não é o trem – é a miragem do trem. Já basta: para que falar em alguma obra que existe, coisa sempre difícil de encontrar, se dá para arrumar voto com uma obra que não existe? O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pelo menos, acha que o truque funciona – tanto que veio a público tempos atrás, apesar das proibições legais, dizer que “o sucesso” do trem-bala se deve à sua candidata Dilma Rousseff e que tinha de dar esse crédito a ela por uma “obrigação moral”. Como é mesmo? Que sucesso? Que trem? Que crédito? Não pode haver crédito se não houve sucesso, e não poderia haver sucesso se não há trem. Ficamos assim, portanto: não existe obra, mas existe uma autora, e devemos estar muito agradecidos a ela. Na feira de Acari se encontra mercadoria mais legítima.
O segundo ato dessa comédia é a conversa fiada sobre o novo patamar do progresso que o Rio de Janeiro e São Paulo viveriam com o trem-bala, e sua necessidade para a Olimpíada de 2010. Todos os países ricos têm esse tipo de trem; como negar ao povo brasileiro o acesso ao mesmo benefício, sobretudo quando está garantido que o Brasil, segundo nos informa o presidente Lula, será a quinta maios economia do mundo em 2016? Essa conversa deveria parar no exato momento em que se constata que milhões de moradores do Rio e de São Paulo gastam duas, três ou mais horas por dia, todos os dias, para ir ao trabalho e voltar para casa, tempo pelo qual não recebem um tostão furado; levantamento da prefeitura de São Paulo mostra que 50% dos paulistanos, e um número ainda maior de cariocas, consomem nesse trajeto entre uma e quatro horas diárias, num sistema de transporte que tem uma das velocidades mais baixas do planeta. Nas áreas metropolitanas do Brasil como um todo, isso lhes custa mais de 90 bilhões de reais por ano em esforço não remunerado. Quanto aos países ricos, o governo parece não ter percebido que só começaram a ter trem-bala depois que ficaram ricos, e não antes.
Mas para que perder tempo com fatos? A farsa compensa muito mais.