J. R. Guzzo: Questão de fé
Publicado na versão impressa de VEJA Existe na vida pública do Brasil de hoje uma pergunta que pode ser decisiva para o nosso futuro próximo: o ex-presidente Lula é um homem de bem? Se ficar comprovado que sim, é, as coisas irão para um lado; se ficar comprovado que não, não é, irão para outro. […]
Publicado na versão impressa de VEJA
Existe na vida pública do Brasil de hoje uma pergunta que pode ser decisiva para o nosso futuro próximo: o ex-presidente Lula é um homem de bem? Se ficar comprovado que sim, é, as coisas irão para um lado; se ficar comprovado que não, não é, irão para outro. Esse tipo de dúvida nem deveria aparecer na discussão política, pois está na cara que a integridade pessoal de quem se propõe a liderar uma nação com 200 milhões de habitantes é o mínimo dos mínimos a esperar numa sociedade que pretende viver com alguma lógica. Se o requisito é essencial para a direção de um clube de futebol, do condomínio de um edifício de apartamentos ou da Santa Casa de Misericórdia, como poderia ser diferente quando está em jogo o comando da República?
Mas o Brasil é o Brasil. Com trinta anos de funcionamento da democracia, se a conta for de 1985 para cá, ou já quase 200 de vida independente, a mera honestidade comum, aquela que mantém o indivíduo a salvo do Código Penal, continua sendo considerada uma virtude quase divina para avaliar um homem público ─ e não uma exigência primária, como ser alfabetizado ou residir no território nacional. Fazer o quê? São nossas coisas, são coisas nossas. Não vão embora nunca; estão mais uma vez aí, no coração da matéria, envolvendo agora o ex-presidente, seus familiares, seus amigos pessoais, seus parceiros de negócio.
Muito bem: e como fica a pergunta feita acima? A resposta, em condições normais, deveria ser bem simples. Não estamos aqui diante de nenhum problema de álgebra comutativa, ou algo assim ─ trata-se apenas de verificar fatos, e a partir deles dizer “sim” ou “não”. O diabo é que as condições não são normais; quase nunca são, na verdade, quando se lida com o mundo político brasileiro. No caso, passou a ser uma regra sagrada para todo homem poderoso deste país, quando se vê diante de uma acusação, substituir o exame dos fatos pelo recurso à fé.
Não interessa, por essa maneira de ver a vida, o que aconteceu; a única coisa que interessa ao acusado é pedir que acreditem naquilo que diz. O ex-presidente Lula, já há muitos anos, tornou-se o grande campeão nacional em matéria de fazer política apostando tudo na crença dos ouvintes ─ não só pela posição de primeiríssimo plano que ocupa no bonde dos que mandam no Brasil, mas também pela pura e simples quantidade de enroscos formados à sua volta.
Não é o único, claro. Justo agora, por exemplo, o deputado Eduardo Cunha, presidente da Câmara e acusado de receber propinas no petrolão, pede para acreditarem que milhões de dólares creditados a seu favor em contas bancárias no exterior vêm de negócios que fez com a exportação de carne moída. Mas Cunha é Cunha e Lula é Lula. É nele, mais que em qualquer outro político brasileiro, que a disputa entre fatos e fé faz balançar o coreto das autoridades.
O ex-presidente, neste preciso momento, tem em sua volta uma boa dúzia de casos que requerem o “sim” ou “não” mencionado anteriormente. Mas o mundo gira, a vida passa, e ele continua a negar para o público a apresentação de qualquer fato capaz de limpar com um mínimo de realismo sua conduta diante de cada um dos episódios em discussão ─ exige, unicamente, que todos acreditem na sua perfeita lisura e na ideia de que 100% das suspeitas contra ele, sem exceção de nenhuma, são fabricadas pela malícia de adversários que não querem vê-lo de volta à presidência da República em 2018.
Um dos seus filhos, por exemplo ─ para ficar apenas no caso mais falado destes dias ─, recebeu 2,4 milhões de reais de uma empresa de consultoria empenhada em obter benefícios fiscais para montadoras de automóveis; seu pai, como presidente, assinou a medida provisória que concedeu esse favor. O filho de Lula disse que o dinheiro lhe foi pago porque prestou serviços de “marketing esportivo”, que não se sabe quais foram, para os consultores em questão.
Outro filho recebeu, ainda no primeiro mandato de Lula, 5 milhões de reais pela venda de metade de uma empresa de games eletrônicos, que jamais ganhou um centavo, para uma empreiteira de obras beneficiada diretamente por um decreto assinado depois pelo pai.Os dois moram em apartamentos de primeira classe cedidos de graça por amigos ─ e por aí vai a coisa, isso para não falar dos negócios do próprio Lula. Quanta gente tem amigos como esses, ou ganha dinheiro desse jeito? É possível que esteja tudo em ordem ─ possível sempre é. Mas para acreditar nisso é preciso ter a mesma fé que se exige para aceitar a carne moída do deputado Cunha.
É fé que não acaba mais.