Escuridão particular
A vela acesa ao lado do teclado gerou uma cena inesperada, como se passado e futuro finalmente tivessem encontrado um elo comum

Heraldo Palmeira
O correio trouxe com antecedência a notícia de que a energia elétrica — força, como dizem os paulistanos em sua prosódia característica — seria cortada em determinada noite de janeiro, para manutenção no sistema. Anotei com a Bic azul na agenda, que continua no modelo antigo de papel e imponente sobre a mesa. Como se fosse um artigo de decoração vintage no meio de artigos da modernidade.
Estava diante da tevê, assistindo à monumental série inglesa Downton Abbey. A cena corria num casarão londrino, onde a família do conde havia se instalado para apresentar uma sobrinha escocesa à corte.
De repente, soou aquele “clac” característico e os equipamentos da casa foram se desligando, enquanto as luzes da sala bruxuleavam até todas as fases serem desconectadas. A promessa da concessionária de energia fora taxativa: a escuridão se estenderia até as últimas marcas da madrugada.
Vim para a mesa de trabalho diante da janela e fiquei maravilhado com a visão da metrópole no escuro. Lá mais adiante, não sei quantos quarteirões, a energia não havia sido cortada e a iluminação distante transformava os incontáveis prédios ao meu redor em sombras. Um mar de fendas e contornos cortado de quando em quando pelo clarão dos faróis dos carros passando ao longe. É impressionante como a escuridão atrai o silêncio, como se renovasse nossos medos de infância nas noites em que acabava a luz.
A vela acesa ao lado do teclado gerou uma cena inesperada, como se passado e futuro finalmente tivessem encontrado um elo comum, aprendido a ser complementares para que as letras surgissem em carreira desabalada pela tela, antes que a bateria do computador se entregasse à sua própria escuridão.
O ar fresco que entrava fazia balançar a chama refletida pelas paredes e por todas as coisas ao redor, como um teatro de marionetes disformes comandadas pela coreografia do vento. A cortina clara virou fundo de palco para projetar o ectoplasma quase invisível que elevava a alma do fogo, no trajeto do pavio até o mistério do sumiço.
Lá longe e nas alturas, uma das torres metálicas da avenida Paulista, em suas cores vivas, parecia ter assumido seu papel nesse teatro de escuros e clarões, o de marco de fronteira da civilização iluminada.
Corri tanto quanto as letras pululando na tela, para chegar a tempo no ponto final antes que a bateria escrevesse seu próprio fim. Deu tempo.
Fechei os olhos, estiquei o corpo debaixo dos lençóis da noite arejada e reencontrei os tempos de menino do interior vasculhando medos e lendas da escuridão das noites do sertão.
Fui indo devagarinho, desligando minhas linhas de transmissão das memórias, revendo postes que sustentavam fios que abrigavam passarinhos e inutilizavam pipas de garotos sem perícia. Fui indo devagarinho até entrar no meu infinito particular, adormecer os clarões da infância e apagar o meu interior. Foi mesmo uma boa noite!
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