A justiça no Brasil: muito inquisitorial, pouco acusatorial
Neste caso não vale o que está escrito, vale sim o etos e as práticas predominantes
Meu pedido a você: espalhe esse vídeo. Procuro dar muita atenção a coisas realmente importantes. Este é um dos temas mais importantes do Brasil: o funcionamento inquisitorial de nossa justiça. Por isso lhe peço encarecidamente que dê publicidade a isso. Precisamos mobilizar as pessoas para reformar o nosso ultra ultrapassado Código de Processo Penal.
O que vou falar aqui são as práticas. Enfatizo isso porque há muita confusão. Há aqueles que me respondem citando nossa Constituição ou artigos de nossas leis, achando que assim mostram que estou errado. É um grande engano dessas pessoas, pois o que está escrito na Constituição e nas leis acusatoriais do Brasil não é cumprido. Não trato aqui da teoria do processo, trato de suas práticas reais.
Tudo que passarei a narrar aprendi com o professor Roberto Kant de Lima e vários de seus alunos, colaboradores e pares. A eles presto aqui minha deferência.
O princípio que rege o funcionamento de nosso processo penal é o inquisitorial. Sim, o nosso sistema vem da tradição da inquisição. Nele busca-se a verdade real dos fatos, tenha esse conceito em mente VERDADE REAL. O que a justiça busca saber é o que realmente aconteceu. Daí a investigação policial e as ações do ministério público.
Aqui o Estado é separado da sociedade e a fiscaliza permanentemente, por meio da ação de seus funcionários, em busca de transgressões e erros. Funcionários do Poder Executivo – policiais – obtém testemunhos e se utilizam de procedimentos investigatórios para colocá-los nos autos de um inquérito inicialmente sigiloso para o acusado. O inquérito é elaborado, escrito e homologado por uma autoridade cartorária que, obviamente, lhe dá fé pública. Se você considerar todos os países do ocidente, somente no Brasil o policial tipifica o crime. Veja o absurdo, é o delegado quem coloca no inquérito qual ele considera ter sido o crime cometido. E isso vai adiante com um carimbo oficial do poder público.
Como é nos outros países? Você deve estar se perguntando. Nos outros países a polícia faz a investigação, levanta os fatos, e os passa adiante, sem carimbo algum, sem tipificação de crime algum. Ela só passa para o Ministério Público uma série de fatos e diz para os procuradores: foi isso aqui que eu vi. Ah, e nos outros países para ser delegado não é preciso ser formado em direito.
Passe a acompanhar o noticiário local de crimes prestando atenção no que o delegado diz: ele sempre vai para frente das câmaras afirmar qual o crime cometido, tipificando-o. Coitado do investigado, já é incriminado de cara, por um funcionário do Poder Executivo, um delegado. Veja só como isso é inquisitorial.
Nas mãos do promotor, caso ele considere o inquérito satisfatório, a denúncia é feita. Apenas neste momento o acusado toma conhecimento da acusação. Ora, neste estágio, já há uma avançada presunção de culpa devidamente consolidada por escrito e com o carimbo oficial. É evidente que o resultado mais provável de um procedimento desta natureza é a condenação do acusado. Aliás, o réu tem agora duas opções, ou confessa, não para interromper o processo, como é o que acontece nos Estados Unidos, mas sim para atenuar a sua pena, ou se não confessar passa a enfrentar os argumentos com fé pública já estabelecidos contra ele nos autos do processo.
Como no Brasil o réu pode mentir para se defender, pois não há consequência alguma para ele se mentir, pesará sempre contra a defesa a suspeição de estar mentindo. Os advogados se referem ao uso da mentira por meio do eufemismo “apresentar outra versão para os fatos”. Impera aqui a lógica do contraditório. Não há fatos acordados pelas partes, mas tão somente indícios e versões. De um lado a versão do estado, gestada dentro do Poder Executivo, por meio da ação investigatória de policiais e consolidada no âmbito do inquérito, que tem fé pública. De outro lado a versão do réu e de seu advogado.
Toda vez que a versão e as alegações do réu divergem do que está escrito nos autos do inquérito, elas têm que ser provadas. Eis aqui o etos inquisitorial de nosso processo penal. O réu precisa provar a sua inocência. Isto é em tudo oposto ao sistema norte-americano onde o povo, por meio da justiça, precisa provar a culpa do acusado. Como no Brasil o réu pode mentir para se defender, não há consequência alguma se fizer isso, as suas afirmações têm sempre a mácula da mentira toda vez que não estiverem em consonância com a apuração sigilosa e que tem fé pública, já consolidada nos autos do processo. Por causa disso, juízes e desembargadores tratam os depoimentos dos réus com a mínima credibilidade, eles partem do pressuposto que o réu e seus advogados estão mentindo.
Como o princípio que rege o processo penal é a busca da verdade real, isso faz uma confusão entre o que se sabe – ou o que a polícia escreveu que sabe – e o que se pode provar. No processo acusatório, só se torna verdade aquilo que se pode provar. A verdade judicial que se pode saber do que aconteceu nunca pode ser real, será sempre uma ou mais tentativas de reconstituição dos fatos ocorridos – e provados em juízo. Assim, no processo inquisitorial a confissão é a rainha das provas, porque é onde o réu confirma a verdade que se supõe saber sobre o ocorrido, mas muitas vezes não se pode provar. Mas isso desde que a confissão coincida com o que foi apurado pela polícia e denunciado pela promotoria. Quem confessa merece a salvação, quem não confessa e é culpado vai para o inferno. Evidentemente o processo penal brasileiro é autoritário. Pela primeira vez figuras da elite política e empresarial brasileira foram e vêm sendo submetidas a tal autoritarismo, que já é um velho conhecido da população pobre brasileira.
Há, portanto, duas versões. Aquela elaborada pela polícia e consolidada pelo ministério público que, nunca é demais repetir, tem fé pública. E a versão do réu sobre a qual pesam as suspeitas de se tratar de algo mentiroso. Diante de inúmeros indícios contraditórios, caberá ao juiz decidir quais indícios o convencem, quais não o convencem. Depois disto, o juiz justifica a sua sentença. Trata-se do livre convencimento motivado do juiz. O juiz, inclusive, tem iniciativa probatória. Vejam que absurdo, o juiz pode solicitar a produção de provas.
Praticamente todos aqueles que se tornam réus no Brasil sabem da enorme dificuldade que terão para escapar da condenação. Assim, quando um juiz acena com a possibilidade de redução da pena no caso de realização de uma delação, o réu tem grande incentivo para aceitar a proposta. Note-se que o réu faz a delação antes mesmo de ser condenado. Ou seja, a delação premiada pressupõe a confissão do crime. Primeiro o réu confessa a sua culpa, em seguida ele delata um suposto cúmplice de seu crime. Na inquisição e até mesmo recentemente no Brasil, a tortura era utilizada para se obter a confissão. É possível afirmar que as péssimas condições prisionais para aqueles que são preventivamente presos durante uma investigação são o equivalente da tortura da Santa Inquisição.
O nosso sistema em tudo difere do sistema acusatorial norte-americano. Lá não há nem a busca de uma verdade real, nem a lógica do contraditório. Há sim a busca da verdade formal, aquela que constará do processo e será resultado de uma barganha entre as partes. Há também as diferentes visões e perspectivas da promotoria e da defesa que se tornam uma argumentação demonstrativa, na qual a mentira é crime para o réu e consequentemente para o seu advogado, e onde o objetivo é a busca do consenso. Diante disto, a confissão de culpa é de pouca utilidade para o processo. Ela não passa de uma explicitação da concordância com uma determinada acusação já previamente negociada entre a promotoria e a defesa. Nos Estados Unidos, ser julgado é um direito. O cidadão norte-americano convoca o direito de ser julgado pela justiça toda vez que ele não se declara culpado. Caberá à justiça provar sua culpa. Um exemplo concreto presente nos estudos do professor Kant serve para ilustrar esta lógica.
Trata-se de um caso de um chicano que em São Francisco se envolveu em uma briga com um segurança de uma boate. O chicano, que falava mal o inglês, foi impedido de entrar na boate por um segurança bem mais alto e forte do que ele. O segurança afirmou que a boate exigia determinados trajes de seus frequentadores. O chicano insistiu em entrar e os dois se envolveram em uma luta corporal na qual o chicano esfaqueou o segurança. A polícia foi chamada e o chicano foi preso em flagrante. O segurança foi hospitalizado e se recuperou.
Diante do juiz o promotor alegou que o chicano cometeu tentativa de homicídio ao esfaquear o segurança desarmado. O réu alegou legítima defesa, posto que o segurança era bem mais forte do que ele. O chicano afirmou ter sido agredido pelo segurança e mostrou marcas da agressão em seu corpo. Além disso, por conta de suas limitações com a língua inglesa ele alegou não entender completamente o que o segurança falava, considerando suas palavras preconceituosas e ofensivas. O juiz afirmou que o caso não possuía nem a relevância nem a gravidade que merecesse um processo longo e custoso e solicitou que as partes chagassem a um acordo.
O promotor recuou da acusação de tentativa de homicídio e mudou-a para lesão corporal grave, o que implicava em pelo menos dois anos de prisão. A defesa e o réu recusaram a acusação e solicitaram o julgamento. Note-se aqui a NÃO CONFISSÃO do crime e o direito de ser julgado e, portanto, de se defender. Na presença do juiz, que insistiu no acordo, a promotoria recuou novamente e propôs a acusação de lesão corporal leve. Diante desta acusação, o réu se declarou culpado e a pena foi de um ano de prisão com direito a sursis. Este caso foi relatado por Roberto Kant de Lima no texto Sensibilidades jurídicas, saber e poder.
O caso do chicano nos leva a refletir sobre a busca da verdade real. Podemos nos perguntar sobre o que realmente ocorreu, se foi tentativa do homicídio, se foi lesão corporal grave, se foi lesão corporal leve ou ainda se foi legítima defesa. Não há algo que realmente tenha acontecido, é impossível saber. Talvez nem mesmo a vítima da agressão e seu perpetrador tivessem sido capazes de saber o que realmente aconteceu. As partes apenas barganharam e, coordenadas pelo juiz, definiram que a verdade deles, naquelas circunstâncias, era a lesão corporal leve.
Note-se que tudo foi barganhado: a verdade jurídica que prevaleceu, o tipo penal e a pena. Ah, em nenhum momento apareceu a figura do delegado tipificando qualquer coisa que seja. O que houve foi a aceitação parcial da verdade da promotoria e da verdade do acusado. Nada mais distante do que o que ocorre no Brasil: a busca por uma verdade real.
Aqueles que defendem o ideário liberal bem sabem que o nosso processo penal, em contraste com o sistema norte-americano, nada tem de liberal. No Brasil, o processo existe para proteger o estado e o governo da sociedade. É o todo-poderoso governo quem acusa os indivíduos, os fiscaliza e os investiga de maneira sigilosa, elaborando-se um processo do qual o réu dificilmente escapará da condenação. Nos Estados Unidos, ao contrário, o juiz representa o povo e ser processado é um direito. O cidadão norte-americano que não se declara culpado tem o direito de solicitar à justiça que prove a sua culpa. Lá, cabe a justiça o ônus de provar a culpa. Aqui, cabe ao réu o ônus de provar sua inocência.
O princípio da presunção da culpa é, no Brasil, erga omnis, vale para todos. O que mais grave está acontecendo agora é que está se formando uma sólida jurisprudência a favor de nosso etos jurídico inquisitorial. Ele vem sendo aplaudido por aqueles que se consideram adversários dos atuais réus, mas o fato é que esta jurisprudência autoritária valerá para todos indistintamente. Assim, em vez de aproveitarmos o que está ocorrendo para reformar nossas práticas jurídicas autoritárias, estamos legitimando-as ainda mais. Lastimável.
Precisamos enfrentar isso divulgando ao máximo este vídeo e o trabalho do professor Kant e de seus alunos e pares. Fica aqui o meu agradecimento.