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Pesquisa de Nicolelis mostra como o cérebro integra objetos externos ao corpo

Equipe do neurocientista foi capaz de fazer um macaco sentir um braço virtual —mostrado em uma tela — como se fosse seu, demonstrando pela primeira vez que as áreas táteis do cérebro podem responder a estímulos puramente visuais

Por Guilherme Rosa
Atualizado em 6 Maio 2016, 16h17 - Publicado em 26 ago 2013, 18h28

Cada ser humano tem no cérebro um modelo de seu próprio corpo. A partir das informações que são coletadas por meio do tato, da visão e da audição, ele toma consciência das fronteiras físicas entre seu corpo – que ele habita, sente e controla – e o mundo exterior. Acontece que esse esquema corpóreo projetado pelo cérebro é mais maleável que o de carne e osso, sendo capaz de incorporar uma série de ferramentas que os homens usam rotineiramente. Um tenista experiente, por exemplo, pode assimilar sua raquete como uma extensão do próprio corpo; uma violinista, seu violino; e um cirurgião, seu bisturi.

CONHEÇA A PESQUISA

Título original: Expanding the primate body schema in sensorimotor cortex by virtual touches of an avatar

Onde foi divulgada: periódico PNAS

Quem fez: Solaiman Shokur, Joseph E. O’Doherty, Jesse A. Winans, Hannes Bleuler, Mikhail A. Lebedev e Miguel A. L. Nicolelis

Instituição: Universidade Duke, EUA; entre outras

Dados de amostragem: Dois macacos, que foram colocados de frente a uma tela onde era exibido um braço gerado por computador. Ao mesmo tempo em que uma bola virtual tocava o braço falso, os pesquisadores tocavam o braço real.

Resultado: Os pesquisadores descobriram que os animais assimilaram o membro virtual à sua imagem corpórea. Ao medir a atividade das regiões táteis e motoras de seu cérebro, eles descobriram, pela primeira vez, que elas também eram capazes de responder aos sinais puramente visuais emitidos pela tela

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Apesar de esse processo ser bem conhecido pelos cientistas, eles não sabiam, até agora, como exatamente a imagem corpórea era formada e deformada no cérebro. Em uma pesquisa publicada na revista PNAS, uma equipe liderada pelo neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis mostra, pela primeira vez, que as áreas tátil e motora do cérebro são capazes de também receber sinais visuais, assimilando ao corpo ferramentas que o indivíduo apenas vê, mas não sente.

A pesquisa de Nicolelis foi baseada na ilusão da mão de borracha, um conhecido truque estudado por neurocientistas de todo o mundo. Durante a ilusão, um indivíduo tem o seu braço real escondido detrás de uma cartolina, enquanto um braço de borracha fica a sua vista. Em seguida, o ilusionista – ou o cientista – toca ao mesmo tempo, e em pontos idênticos, o braço falso e o verdadeiro. Ao ver a mão de borracha sendo tocada enquanto sente os estímulos reais, o indivíduo assimila esse braço como se fosse parte de seu corpo – ignorando a existência do membro escondido.

Ilusão real – Em sua experiência, a equipe de Nicolelis realizou um procedimento parecido com dois macacos. Eles foram colocados de frente a uma tela, onde era exibido um braço realista gerado por computador. Enquanto, na imagem, o membro virtual era tocado por uma bola, os cientistas estimulavam seus braços verdadeiros nos mesmos pontos. Assim como na ilusão da mão de borracha, os animais assimilaram o braço virtual para sua imagem corpórea.

Enquanto isso, os cientistas analisavam a atividade das áreas cerebrais responsáveis por processar informações táteis e motoras dos macacos. A chave para entender o fenômeno aconteceu em seguida, quando os pesquisadores fizeram a bola tocar o braço virtual, sem que o estímulo real correspondente acontecesse. “Nesse momento, o macaco apenas vê a esfera virtual tocando no braço. Mesmo assim, os neurônios responsáveis por processar as informações táteis e motoras disparam”, afirma Nicolelis em entrevista ao site de VEJA.

PNAS ()

Caminho indireto – Segundo o pesquisador, os neurônios dessas regiões demoraram entre 50 e 70 milissegundos para responder aos estímulos visuais. Isso demonstraria que essas informações não chegam diretamente às áreas tátil e motora, mas passam antes pela área responsável por processar os estímulos visuais. “A informação não chega ali de modo direto, mas indiretamente. Nós mostramos, pela primeira vez, que o córtex visual tem acesso ao córtex tátil”, diz o pesquisador.

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Isso demonstraria que o processamento das informações sensoriais não acontece, necessariamente, em apenas uma região do cérebro. Assim, o órgão funciona muito mais como uma rede que analisa os dados recebidos de modo distribuído do que como uma máquina compartimentada. “Nós mostramos que aquela visão antiga do cérebro dividido em áreas estritamente especializadas não tem mais sentido. O processamento das informações é muito mais dinâmico e bem distribuído, a ponto de uma área tátil responder a estímulos visuais.”

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O exoesqueleto no corpo – A pesquisa se insere na sequência lógica dos experimentos liderados por Miguel Nicolelis nos últimos anos. Ela surgiu logo após um estudo publicado em 2011, no qual o cientista usou uma interface cérebro-máquina-cérebro para fazer um macaco mexer um cursor na tela de um computador apenas com seu pensamento. Nesse caso, o animal também assimilou o braço virtual para sua imagem corpórea, o que levou o pesquisador a estudar por meio de que mecanismos seu cérebro era capaz de fazer isso.

Saiba mais

INTERFACE CÉREBRO-MÁQUINA-CÉREBRO

São sensores capazes de captar a atividade elétrica dos neurônios, decodificá-la, remetê-la a artefatos robóticos e depois de volta para o cérebro por meio de sinais visuais, táteis ou elétricos. Na prática, as ICMCs transformam os pensamentos em comandos digitais que as máquinas podem entender.

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Agora, Nicolelis diz que está usando o resultado do experimento para ajudar no desenvolvimento de novas interfaces cérebro-máquina, como o exoesqueleto que pretende construir e demonstrar no jogo inaugural da Copa do Mundo no Brasil, em 2014. A ideia é que o aparelho seja controlado por um deficiente físico apenas com seu pensamento, restaurando suas funções motoras e sensoriais. “Como já conhecíamos o resultado desse experimento há mais de um ano – esse é o tempo médio que uma pesquisa leva para ser publicada hoje em dia -, nós estamos tirando proveito disso para construir o exoesqueleto, para fazer com que ele também seja assimilado pela imagem corpórea do paciente”, diz.

Miguel Nicolelis ()

“Agora, sabemos que as próteses usadas em terapias de reabilitação podem ser assimiladas pelo cérebro do paciente”

Miguel Nicolelis

Chefe do laboratório de neuroengenharia da Universidade de Duke, EUA, e diretor científico do Instituto Internacional de Neurociências de Natal

Como o cérebro forma a imagem de seu próprio corpo? O esquema corpóreo é formado a partir dos sinais sensoriais – táteis, visuais ou auditivos – que o cérebro captura. O que acontece é que, até a nossa pesquisa, ninguém sabia como ele redesenhava o corpo a partir de sua interação com objetos artificiais. A ilusão do membro de borracha é um exemplo disso. Nela, a pessoa sente o braço de um manequim como se fosse o seu próprio braço. É uma ilusão muito forte, que é sentida por 90% das pessoas. Mas ninguém sabia com ela se materializava, como o cérebro criava essa materialização do braço artificial.

O que o seu estudo pode explicar sobre a incorporação de ferramentas externas para o esquema corpóreo? Na verdade, o avatar que nós mostramos na tela não passa de uma ferramenta que o macaco usou – um membro artificial. Nossa experiência sugere que qualquer ferramenta usada por uma pessoa pode ser assimilada como extensão de seu esquema corpóreo. Há dez anos eu venho defendendo uma hipótese para explicar a habilidade de Pelé: eu digo que, em seu cérebro, a bola já estaria assimilada como parte de seu corpo. Agora nós temos uma prova cabal dessa teoria, de que é realmente possível que a representação de seu pé, projetada pelo cérebro de Pelé, tenha uma bola incorporada.

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No começo do ano, o senhor publicou um estudo no qual conectava o cérebro de dois ratos. Por meio de uma interface cérebro-cérebro, um dos animais conseguiu sentir o que era captado pelo bigode do outro. Como sua nova experiência pode explicar esse estudo anterior? Nossa pesquisa atual dá subsídios para afirmarmos que as vibrissas do segundo rato foram assimiladas pelo cérebro do primeiro. Ou seja, o esquema corpóreo do animal incluiu seu próprio corpo inteiro, mais um pedaço do corpo do outro rato.

Qual pode ser o impacto dessa pesquisa? Esse trabalho estende dramaticamente o limite da plasticidade cerebral – até por isso ele foi aceito pela PNAS, uma das revistas científicas mais citadas do mundo. Ele terá impacto tanto na pesquisa básica em neurociência quanto na parte clínica. Agora, sabemos que as próteses usadas em terapias de reabilitação podem ser assimiladas pelo cérebro do paciente. Inclusive, estamos aplicando esse conhecimento em nossos estudos no projeto Walk Again. Como já conhecíamos o resultado desse experimento há mais de um ano – esse é o tempo médio que uma pesquisa leva para ser publicada hoje em dia -, nós estamos tirando proveito disso para construir o exoesqueleto, para fazer com que ele também seja assimilado pela imagem corpórea do paciente.

Em que estágio estão as pesquisas do projeto Walk Again? Devemos inaugurar o nosso laboratório na AACD em cerca de duas semanas. Em setembro, devemos começar os testes aqui no Brasil. O exoesqueleto está sendo construído por laboratórios europeus desde junho, e deve estar pronto para ser trazido para cá e testado até o final do ano.

Como serão realizados esses testes? Eles serão regulamentados tanto por um comitê de ética local quanto pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). A identidade dos pacientes terá de ser respeitada. O Walk Again é um projeto de pesquisa que deve durar vários anos – ele começou neste e não termina na Copa do Mundo. Ela será simplesmente um episódio para demonstrarmos a tecnologia. Isso precisa ficar claro: não estaremos realizando nenhum experimento durante a Copa, nós simplesmente vamos mostrar o que estará funcional à época. O processo experimental deve continuar por vários anos até que tenhamos atingido nosso objetivo final. É um programa científico, e teremos uma série de artigos publicados durante todo esse tempo.

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