Assine VEJA por R$2,00/semana
Continua após publicidade

Jornalista faz resgate de memórias sobre o tráfico de escravizados

Tara Roberts aprendeu a mergulhar para se unir a uma ONG que mapeia destroços de navios negreiros naufragados

Por Alessandro Giannini Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 4 set 2022, 08h00

Nos últimos anos, a jornalista americana Tara Roberts dedicou-se a lançar luz sobre um capítulo seminal, embora negligenciado, da história: o tráfico de escravizados entre África e Américas dos séculos XVI a XIX — o que, triste e infelizmente, inclui o Brasil. Integrante da organização não governamental Diving With a Purpose (DWP), formada por mergulhadoras e mergulhadores negros, Tara explora os oceanos em busca de naufrágios dos chamados navios negreiros. Os destroços dessas embarcações são peças fundamentais para a reconstrução das vidas de homens, mulheres e crianças que morreram nas travessias. Ela transformou sua jornada pessoal em um podcast, Into the Depths, que lhe valeu inclusive o respeitado título de Exploradora do Ano, concedido pela National Geographic.

Tudo começou em 2016. Numa visita ao recém-inaugurado Museu Nacional de História e Cultura Afro-­Americana, em Washington, Tara subiu ao 2º andar, um piso minúsculo e um tanto malcuidado que a maioria das pessoas costuma pular porque é parecido com um arquivo, entre armários e corredores estreitos. Foi quando encontrou a foto de pessoas negras usando trajes de mergulho dentro de um barco. Ela nunca havia visto nada parecido. Apaixonou-se. Descobriu, então, que faziam parte da DWP, cuja missão é vasculhar as profundezas em busca de vestígios das infames embarcações, conhecidas como tumbeiros.

arte escravidão

Depois de entrar em contato com a DWP, um dos seus fundadores, Kenneth Stewart, convidou-a para mergulhar. Durante três meses, ela fez um curso e conheceu as pessoas de máscara e cilindro de oxigênio com quem se encantara na foto do museu. Também aprendeu mais sobre o trabalho que faziam ao localizar os naufrágios no fundo do mar, mapeá-los no leito submarino e catalogar os destroços. Largou o emprego para poder acompanhá-los. “Queria fazer algo em torno do movimento racial”, diz a VEJA. “Fiquei deslumbrada, alguém precisava contar a história deles.”

Em várias partes do mundo, Tara e os dublês de arqueólogos submarinos documentaram os restos de navios como o Clotilda, na costa dos Estados Unidos, o São José Paquete d’Africa, na África do Sul, e o Fredericus Quartus e o Christianus Quintus, afundados depois de um motim na Costa Rica. A exploradora relembra da emoção que sentiu ao vasculhar águas costarriquenhas em busca das duas fragatas com nomes de reis dinamarqueses. Ao observar a âncora de uma das embarcações no fundo do mar, sentiu um misto de força e tristeza. “Talvez por saber o que as pessoas experimentaram na travessia”, diz. “Mas percebi que era uma oportunidade para homenagear esses personagens que foram esquecidas ao longo dos séculos.”

Continua após a publicidade
Lázaro Ramos em depoimento dado a Amanda Péchy
MAQUETE - Christianus Quintus: motim levou ao afundamento do barco – (THE JOSEPH ALLEN SKINNER MUSEUM/.)

Estima-se que 12,5 milhões de africanos foram transportados em 36 000 viagens durante mais de 400 anos, segundo dados colhidos pelo Trans-­Atlantic Slave Trade Database, serviço administrado pela Universidade Emory, instituição americana que agrega informações sobre o tráfico transatlântico de cativos. Cerca de 1 000 embarcações foram perdidas no mar nesse período de quatro séculos, o que causou a morte de mais de 1,8 milhão de pessoas. Menos de vinte navios foram encontrados e só uma parte foi estudada com a devida atenção. “O que estamos fazendo é chamar a atenção para uma parte da história que não foi examinada com a amplitude necessária”, afirma Tara.

Nesse retrato trágico, o Brasil tem papel de destaque porque foi o país que mais recebeu cativos e um dos últimos a abolir a escravidão, em postura vergonhosa e que até hoje produz ecos. Entre 1500 e 1869, desembarcaram nos portos de Recife, Salvador e Rio de Janeiro — os maiores das Américas para esse fim — mais de 5 milhões de africanos. É natural, portanto, que Tara e as equipes da DWP nutram agora especial interesse pelo litoral brasileiro. Não à toa, portanto, o país está na lista de países a ser visitados. Contudo, a exploração só pode ser feita se for autorizada pelas autoridades locais. Seria uma iniciativa louvável, do ponto de vista histórico, e um aceno a uma dívida social que precisa ser paga. Um dos modos é demonstrar respeito pelo passado, homenageando aqueles que morreram em jornadas inaceitáveis, que jamais podem se repetir. Mas é preciso trazê-­las à tona.

Publicado em VEJA de 7 de setembro de 2022, edição nº 2805

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.