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É para ter medo?

O ataque de um tubarão a um surfista, ao vivo, pela televisão, faz renascer um dos temores clássicos de nosso tempo, multiplicado pelo cinema. As estatísticas mostram que a preocupação é exagerada

Por Pieter Zalis e Renata Lucchesi
Atualizado em 6 Maio 2016, 16h02 - Publicado em 24 jul 2015, 22h34

Para Gabriel García Márquez (1927-­2014), capaz de criar inesquecíveis cidades imaginárias e personagens fantásticos, delicado mesmo era olhar para o comportamento banal do ser humano. Escreveu o Nobel de Literatura em 1980: “O único medo que nós, latinos, confessamos sem vergonha e até com um certo orgulho machista é o medo de avião. Talvez porque seja um medo diferente, que não existe desde nossas origens, como o medo do escuro ou o próprio medo de que se perceba que sentimos medo. Pelo contrário: o medo de avião é o mais recente de todos, pois só existe a partir do momento em que se inventou a ciência de voar, há apenas 77 anos”. O medo de tubarões é ancestral. Há relatos da ferocidade dos cães marinhos em textos da Grécia antiga. O primeiro relato de um ataque data de 492 a.C., com a descrição da suposta aparição de um monstro marinho que, sozinho, foi capaz de devorar uma frota inteira de militares persas durante a guerra entre as duas civilizações. Superstições e lendas de culturas ao redor do mundo, dos aborígines da Austrália às tribos xosas da África do Sul, são povoadas pela dentição oblíqua e serrilhada dos peixes de esqueleto cartilaginoso. Atribui-se a origem etimológica da palavra shark, em inglês, inicialmente usada por um navegador britânico no século XVI, ao alemão Schorck, “o predador, aquele que ataca os outros”, variante de Schurke, “vilão, canalha”. Não por acaso, tubarão é também o “negociante ganancioso, o indivíduo inescrupuloso que obtém cargos rendosos”.

O tubarão, enfim, nunca teve vida boa no imaginário do ser humano, embora, das mais de 400 espécies que habitam os oceanos, apenas três realmente ataquem gente de carne e osso com frequência – o tubarão-branco, o tu­­barão-cabeça-chata e o tubarão-tigre. Na semana passada, uma cena que parece ter sido extraída do arrasa-quarteirão Tubarão, de Steven Spielberg, de 1975, fundador de um gênero do cinema e refundador de um pavor, realimentou os temores. Numa das etapas da Liga Mundial de Surfe, em Jeffreys Bay, na África do Sul – a poucos quilômetros de Port Elizabeth, onde a seleção brasileira foi mordida pela Holanda na Copa do Mundo de 2010 -, o australiano Mick Fanning, de 1,77 metro, tricampeão mundial nas ondas, foi espetacularmente atacado por um tu­barão-branco de pelo menos 3,5 metros. “Tive o instinto de que havia alguma coisa atrás de mim, ela bateu na minha prancha e de repente estava ali ao meu lado”, contou. “Senti como se tivesse sido chutado, dei dois socos para me livrar. Não posso acreditar. Estou inteiro, não há nada de errado comigo. Ainda estou delirando.” Foi assustador para Fanning, e também para quem acompanhava a bateria pela televisão, ver a presa e o predador, o homem e a barbatana dorsal do bicho. E voltou com tudo uma pergunta que nunca quis calar: é para ter medo de tubarões? Ou, em outros termos, qual é o risco de alguém no mar ser atacado pelo peixão? Estatisticamente, reduzidíssimo. Mas a selacofobia – eis o nome que se dá ao medo de tubarões – não é vencida assim tão facilmente.

Fanning, ainda atônito, resumiu sua aventura em palavras certeiras: “Fui azarado, mas sortudo”. Sortudo porque são raríssimos os casos de vítimas que saem ilesas depois da abordagem de um tubarão-branco – ele domina, com 314 casos, o ranking global de ataques em que foi possível identificar a espécie (quase o triplo do segundo colocado, o tubarão-tigre) e encontra, na costa da África do Sul, a abundância de focas e outros mamíferos marinhos que são a base de sua cadeia alimentar. Fanning foi azarado porque os números gritam. Pesquisadores americanos da Universidade da Flórida compararam – com base no número de mortes em 2003, na expectativa de vida americana e no total da população nos Estados Unidos – a probabilidade de humanos morrerem vítimas de tubarões e outros riscos. A conclusão é que, antes de nos preocuparmos com as feras cartilaginosas ao ir à praia, devemos ficar muito mais precavidos, por exemplo, contra raios e o próprio mar. Segundo a pesquisa, uma morte por ataque de tubarão ocorre a cada 3 748 067 mortes. O índice de fatalidade dos atingidos por raios é de uma a cada 79 746 mortes. Por afogamento, a proporção é de uma para 1 134. Os riscos podem estar até diminuindo. Um estudo divulgado recentemente pela Universidade Stanford mostra que, na Califórnia, os riscos de um indivíduo ser atacado caíram 91% desde 1950, apesar do aumento da população global e do uso mais intensivo da praia como local de lazer. Mesmo surfistas, mais propensos ao olfato dos tubarões, por motivos óbvios, são presas raras. Campeonatos profissionais de surfe são disputados desde 1976. O ataque a Fanning foi o primeiro a um atleta durante uma competição. Diz Renato Hickel, diretor da WSL, a liga mundial de surfe: “Um caso isolado como esse não vai interferir no calendário do circuito. É prematuro pensar na exclusão da etapa. Nossa atenção é com o aumento de patrulhamento, mais jet skis, drones e a colocação de tornozeleiras que funcionam como repelente de tubarões”.

Números

  • O risco de morrer (nos EUA) em um ataque de tubarão é de: 1 a cada 3.748.067 mortes
  • Já o de ser atingido por um raio: 1 a cada 3.748.067 mortes
  • …em um acidente aéreo: 1 a cada 79.746 mortes
  • …afogado: 1 a cada 1.134 mortes
  • …em um acidente de carro: 1 a cada 84 mortes

Antes que se imagine o tubarão à espreita como mera cena de cinema ou praias longínquas, tudo muito distante do Brasil, convém lembrar o passado recente do litoral sul de Pernambuco. O estado contabiliza 56% das histórias de ataque no Brasil. “Pernambuco não tem mais tubarões que outros estados brasileiros. Aqui há uma combinação de muitos fatores que levam ao surto de ataques a partir de 1992”, explica o pesquisador Flávio Hazin, da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Além de praias movimentadas, as alterações antrópicas no ecossistema, com a construção do Porto de Suape, juntam-se a fatores naturais como a existência de canais e correntes que aproximam os tubarões da orla do estado, com destaque para o litoral do Recife, onde os detritos orgânicos do chorume de um lixão e do esgoto urbano despejado no Rio Jaboatão são a cereja do bolo para os tubarões da espécie cabeça-chata e tigre, comuns na costa brasileira.

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Já que o jogo é estatístico – ainda que uma única pessoa seja atacada, ela terá sido 100% atacada, e números nesses casos só irritem -, um modo diferente de olhar para o embate é assumir o ponto de vista dos tubarões. Eles matam menos de dez pessoas por ano, em média. Mas mais de 100 milhões de tubarões foram pescados todos os anos, de acordo com um estudo da Universidade Dalhousie, do Canadá. Não resolve nosso problema, mas é sempre bom saber que não está fácil para ninguém.

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