A América ainda não aparecia nos mapas existentes quando, em 1492, Cristóvão Colombo desembarcou no que viria a ser chamado de Novo Mundo, dando início ao processo de colonização europeia. A chegada, que começou pelas Bahamas, revelou aos europeus uma vasta diversidade de povos nativos e uma riqueza natural que seria explorada até seus limites. Entre os muitos elementos incomuns para os recém-chegados, uma planta usada havia milênios pelas populações indígenas chamou atenção: a coca. Essencial para a sobrevivência nas diversas paisagens sul-americanas, a erva era desconhecida dos europeus. “Quando perguntei a alguns desses índios por que carregavam as folhas na boca, eles disseram que isso evitava a fome, dando-lhes grande vigor e força”, escreveu Pedro Cieza de León, conquistador espanhol, em 1548, em sua primeira expedição ao Peru. Apesar da relevância nas culturas andinas, a coca não teria despertado mais que a curiosidade ocasional dos estrangeiros, mais interessados em produtos lucrativos como tabaco, chocolate e, claro, ouro. Novas descobertas, no entanto, contestam essa versão dos fatos — e é possível que a droga tenha sido levada para a Europa ainda nos anos 1600.
Uma análise toxicológica feita nos restos mortais mumificados de duas pessoas enterradas em um antigo hospital de Milão, o Ca’Granda, revelou vestígios de componentes ativos da coca. O detalhe surpreendente: os indivíduos morreram em algum momento do século XVII — dois séculos antes da chegada presumida da planta pelas bandas de lá. Acreditava-se que a coca atravessara o Atlântico apenas no século XIX. Em 1855, seus compostos foram isolados e sintetizados como sais de cloridrato de cocaína. Rapidamente, o pó branco conquistou adeptos. Foi adicionado a vinhos — com o selo de aprovação do papa —, a refrescos e também a tônicos e pastilhas analgésicas. O austríaco Sigmund Freud (1856-1939), o pai da psicanálise, fascinado por seus efeitos, chegou a chamá-la de “droga mágica” e a recomendava como tratamento para várias enfermidades, inclusive, ironicamente, o vício em opiáceos. Era vendida de forma livre em apotecas como uma verdadeira panaceia. O resto, como dizem, é história: a cocaína se espalhou e se tornou uma epidemia global que persiste até hoje.
A revelação, publicada no periódico Journal of Archaeological Science, altera a cronologia e abre novas questões sobre as rotas globais de comércio entre a Europa e as Américas desde o fim do Renascimento ao início da Idade Moderna. “A descoberta é a primeira evidência concreta do uso da planta de coca na Europa”, escreveu Gaia Giordano, autora principal do estudo. O hospital Ca’ Granda, também chamado de Maggiore, fundado em 1456, tinha como missão oferecer atendimento gratuito aos mais pobres. No século XVI, tornou-se o principal de Milão e um dos mais avançados do continente, pioneiro em diversos tratamentos. Pesquisadores que estudavam o uso de substâncias na instituição focaram suas atenções na cripta, que abrigou sepultamentos. O mausoléu guarda atualmente 2,9 milhões de ossos, pertencentes a mais de 10 000 pessoas que ali morreram. Além da cocaína, outras descobertas feitas recentemente no sítio arqueológico incluem traços de ópio, detectados por meio de sementes de papoula, e de Cannabis — cuja presença na Europa também não havia sido registrada com a devida certeza até então.
O conjunto de evidências recentes suscita novas perguntas sobre a percepção e o uso de drogas na Europa antes do século XIX, quando a prática se tornou mais comum. Embora ainda existam muitas dúvidas, é possível que a coca fosse consumida por suas propriedades estimulantes, assim como o café e o tabaco, populares naquela época. Seu uso pode ter sido parte de uma tendência ainda mais ampla de experimentação com produtos trazidos por meio do comércio transatlântico. A presença dessas substâncias entre os mais desfavorecidos também sugere que a coca, ao contrário do que se imaginava, era relativamente barata e de fácil acesso.
São achados que apontam para a possibilidade de as raízes e a popularidade da cocaína terem sido plantadas muito antes do que se supunha. Renovadas pesquisas e investigações são necessárias, ainda, para atrelar certezas onde há suposições, ainda que muito bem fundamentadas. De qualquer modo, a trilha de investigação em torno da história da medicina e da ciência é fascinante demais para ser desdenhada.
Publicado em VEJA de 13 de setembro de 2024, edição nº 2910