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Uma nova identidade: dez transexuais e suas histórias

Em um país marcado pela violência contra transgêneros, VEJA traz relatos de pessoas que superaram dificuldades e encontraram algum tipo de aceitação social

Por Fernanda Bassette
Atualizado em 13 out 2017, 17h19 - Publicado em 13 out 2017, 09h00

Eles representam 0,5% da população mundial. Até pouco tempo, eram praticamente invisíveis aos olhos da população e, especialmente, do governo, pois não são contabilizados pelo Censo do IBGE. As políticas públicas de atendimento a essa população acabaram de completar vinte anos, mas apenas depois de 2008 começaram a funcionar de maneira estruturada, ainda que insuficiente: no Brasil são apenas cinco centros especializados para a realização de cirurgias de mudança de sexo e nove ambulatórios para terapia hormonal.

A população transexual ganhou visibilidade no horário nobre da televisão brasileira, graças à personagem Ivana da novela A Força do Querer, que retrata a vida de um homem que nasceu no corpo de um mulher. Ivana, na verdade é Ivan, um homem transexual como milhares de brasileiros anônimos. Filho de uma família de classe média alta, o personagem enfrenta seus medos e a rejeição familiar, assim como a maioria dos trans da vida real.

Fora da ficção, no entanto, a realidade é ainda mais cruel. O Brasil lidera o ranking mundial de assassinatos de pessoas transexuais, segundo monitoramento da ONG Europeia Transgender feito em 65 países. Em 2016, pelo menos 808 pessoas perderam a vida por serem trans no Brasil – duas por dia, enquanto no México (segundo país no ranking), foram 229 assassinatos.

“A população de transexuais e travestis ainda é a mais estigmatizada e incompreendida do Brasil. Não existimos oficialmente para o governo, somos assassinados diariamente simplesmente por sermos quem somos. Para nós, tudo é mais difícil, até mesmo conseguir usar o nome social”, diz Keila Simpsons, presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), que afirma que pelo menos 90% das mulheres transexuais e travestis ainda vivem da  prostituição e são marginalizadas.

Atendimento especializado

A população transexual pode procurar atendimento cirúrgico especializado em São Paulo, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Recife e Goiânia. Em São Paulo e no Rio, no entanto, os dois serviços mais antigos estão fechados para atendimentos de novos casos desde 2015 e de 2010, respectivamente, porque não conseguem dar conta da demanda. No caso de São Paulo, por exemplo, a agenda de cirurgias está completa até 2021. E já existem oitenta pessoas aptas a operar – e elas serão atendidas apenas em 2022. Outros 120 pacientes aguardam para ser avaliados e nem sequer passaram pela triagem.

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O Hospital das Clínicas de São Paulo é o único que tem um centro cirúrgico exclusivo para atendimento dessa população. A unidade é capaz de realizar quatro cirurgias por mês, sendo duas novas e dois retoques ou complementações, totalizando 24 novas cirurgias por ano.

Desde que fechou o atendimento para novos casos de adultos, o Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo (IPqHC) passou a focar o acolhimento de crianças a partir de 3 anos e de adolescentes. O serviço que funciona desde 2010 já recebeu 170 adolescentes e sessenta crianças.

“Passamos a focar nestas pessoas porque houve um aumento espontâneo de consultas ambulatoriais para esse público. Começamos a dar vazão a este atendimento e a procura só aumentou. É um trabalho muito delicado, específico. E quanto mais cedo começarmos esse atendimento, melhor para a pessoa”, afirma  o psiquiatra Alexandre Saadeh, coordenador do serviço.

De acordo com ele, a partir dos 3 anos a criança já expressa identidade de gênero. “Não fazemos nada com essa criança, a gente orienta os pais e faz o acompanhamento. A grande questão é fechar o diagnóstico correto o mais cedo possível para que a puberdade biológica dessa criança não se desenvolva e ela não tenha os caracteres principais do seu sexo biológico até chegarmos na idade em que a hormonioterapia será possível”, explicou.

Uma das principais lutas da população de travestis e transexuais é a “despatologização” da condição. Existem várias correntes nesse sentido, especialmente na Europa. A transexualidade ainda consta como doença mental no DSM 5 (Manual de Doenças Mentais, a referência mundial da psiquiatria). “A transexualidade não é doença, mas é preciso ter um diagnóstico. O olhar psiquiátrico é importante para afastar outros transtornos que envolvem a identidade de gênero. O diagnóstico é fundamental para que a pessoa tenha direito a buscar o tratamento hormonal e cirúrgico pelo SUS”, explica Saadeh.

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A mesma opinião é compartilhada pela endocrinologista Elaine Frade Costa, coordenadora do Ambulatório de Transexuais do Hospital das Clínicas da USP. “Se essa classificação sair por completo do DSM, essas pessoas não precisarão de acompanhamento médico. Não tendo um CID [classificação internacional de doenças] não tem por que você ser atendido pelo SUS”, diz.

Segundo Eduardo David Gomes de Sousa, do Ministério da Saúde, o credenciamento de novos serviços é uma limitação que o governo enfrenta, especialmente por falta de infraestrutura adequada nos estados e profissionais especializados nesse atendimento. “Estamos constantemente tentando ampliar a rede cirúrgica e hospitalar, mas o que mais conseguimos são serviços ambulatoriais”, diz ele, que considera a oferta de serviços do SUS para transexuais uma das melhores do mundo.

Escolaridade e profissão

Dados inéditos de uma pesquisa realizada pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo buscou traçar o perfil e histórias pessoais e educacionais dessa população. O projeto Muriel foi coordenado pela professora Maria Amélia Veras e ouviu no decorrer de dois anos 673 pessoas transexuais de sete cidades do estado. Os resultados são alarmantes:  75,5% dos entrevistados relataram estar trabalhando, mas com vínculos empregatícios precários. Desses, 60,5% são autônomos; 8,7% não possuem carteira de trabalho assinada e 6,3% trabalham como diaristas. Para piorar o cenário da informalidade, a média de permanência em cada emprego não supera nove meses.

Ao avaliar o nível de escolaridade do grupo que participou da pesquisa, Maria Amélia constatou que apenas 1% deles chegou a completar o nível superior e fazer pós graduação. Um terço da amostra estudou apenas o primeiro grau e depois saiu da escola. 32,5% concluiu o segundo grau e apenas 4% chegaram à universidade. “A pesquisa demonstra de forma clara que o acesso à escolaridade e ao emprego ainda é muito precário”, diz Maria Amélia.

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“A empregabilidade nessa população é muito complicada. O abandono dos estudos acontece muito cedo por falta de apoio familiar e de oportunidades, pois a maioria desses adolescentes são colocados para fora de casa. Raríssimos são os que chegam ao ensino superior, a trajetória é muito difícil”, avalia Regina Facchini, pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Segundo Regina, em geral, os que chegam a terminar os estudos receberam o apoio da família. Os demais, quando estão realmente determinados a estudar,  chegam com atraso, pois retornam à escola por volta dos 25 anos.

Desde 2014, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) permite que as pessoas transexuais se inscrevam na prova usando o nome social, mesmo que ainda não ele tenha sido oficialmente alterado na Justiça. “Você nota um aumento no número de inscrições ano a ano porque as pessoas passam a se sentir mais à vontade de participar com o nome que realmente de identificam”, diz Regina. Segundo o Ministério da Educação, foram 102 inscrições com nome social em 2014; 278 em 2015; 408 em 2016.

Em São Paulo, uma das formas de inserção na escola e no mercado de trabalho acontece por meio do Programa TransCidadania, implementado em 2015 pelo ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT). O projeto é voltado para a para transexuais e travestis de baixa renda, que recebem uma bolsa de 983 reais para se manter estudando e, posteriormente, ser encaminhadas ao primeiro emprego. Ao todo, são ofertadas 175 vagas.

Mesmo diante de um cenário tão complexo e adverso, reportagem de VEJA foi atrás de personagens transexuais que viveram e superaram todas as dificuldades inerentes à condição em um cenário como o descrito acima. E encontrou pessoas que, após o turbilhão – psicológico, social e familiar -, encontraram a felicidade e algum tipo de aceitação social: há um médico, uma delegada de polícia, um guarda-civil, um servidor do Judiciário, atores, publicitários, empresários e professores. Abaixo, o relato de cada um deles.

Conheça a história de dez transexuais

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Ariadne Ribeiro
36 anos, pedagoga


Bruna Coutinho da Silva
52 anos, professora


Erick Barbi
38 anos, músico, empresário e publicitário


Gabriel Graça de Oliveira
51 anos, psiquiatra e professor


Jordhan Lessa
50 anos, guarda-civil

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Laura de Castro Teixeira
36 anos, delegada


Leona Jhovs
30 anos, atriz, produtora e apresentadora


Luca Scarpelli
27 anos, publicitário


Luiza Coppieters
38 anos, professora


Matthew Miranda Gondin
25 anos, auxiliar de escritório e empresário

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