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Temer, o presidente que veio do campo

O caminho que Michel Temer percorreu da zona rural de Tietê até alcançar o Palácio do Planalto

Por Ullisses Campbell
21 Maio 2016, 13h34

Quem olha para a imagem elegante do homem de 1,70 metro de altura e 75 anos que acabou de assumir a Presidência da República não imagina que ele veio da roça. Na infância, bem mirradinho, Michel Miguel Elias Temer Lulia mantinha uma vida simples. Acordava com as galinhas, tomava café às pressas e percorria a pé os dois quilômetros que separam a chácara em que morava da escola pública Plínio Rodrigues de Moraes, onde cursou em meados da década de 1940 o equivalente ao ensino fundamental, na zona rural do município de Tietê, interior de São Paulo. A estrada era de chão batido e empoeirada. No trajeto, atravessava o cafezal que dava sustento à família de dez pessoas. No meio do caminho, encontrava-se com o amigo James Milanelo. Seguiam na maior galhofa. Só não havia algazarra quando tinham de enfrentar a temida professora de Matemática, Ossin José, mais conhecida na região como dona Linda. O nome doce não combinava em nada com a postura poderosa da mestra, que não tolerava conversa fiada em sala de aula. Ensinava sob o mais absoluto silêncio. Se alguém desse um pio, ela encarava o infrator com um olhar fulminante e perguntava em tom enfático: “Posso continuar?”. “Ai de quem ousasse a responder”, lembra Milanelo, hoje com 75 anos.

Passadas sessenta primaveras desde que saiu de Tietê, Michel Temer não esqueceu a professora, nem o amigo de infância. Muito menos a chácara que servia de cenário para a vida bucólica do passado. Todas as vezes que vai à cidade natal, mesmo depois de exercer a vice-presidência e andar cercado de seguranças, Temer corre para dar um abraço no velho amigo e trocar algumas horas de prosa. “Sempre falo para ele: ‘Michel, você está velho e rico; casado com uma mulher linda e é pai de um garotinho. Larga esse negócio de ser presidente e vai curtir o resto da sua vida’. Ele ri e não me obedece”, conta Milanelo, às gargalhadas. A professora chega a se emocionar quando fala do ex-aluno ilustre. Pelas suas lembranças, Temer era um aluno aplicado, apesar de ter certa dificuldade em fazer contas mais complexas. Sentava na primeira cadeira, bem perto do quadro de giz, lugar disputado por quem queria aprender. Quando Temer ocupou pela primeira vez o Palácio do Jaburu, em 2010, Linda enviou a ele uma carta escrita à mão, desejando boa sorte e pedindo que olhasse pelos professores aposentados. Hoje, ela não consegue esconder um fiapo de revolta por ter dado aula para uma criança que se tornou presidente da República e receber ao final do mês só 1 800 reais de aposentadoria. Doente, ela gasta 800 reais com uma acompanhante noturna e mais 600 com uma empregada. Sobram 400 reais para as demais despesas. “Agora ele assumiu o lugar da Dilma. Será que ele me consegue um aumento?”, pergunta Linda, de 91 anos.

Filho de imigrantes libaneses que desembarcaram no Brasil em 1930 para beneficiar arroz e café, Temer é o caçula de oito irmãos. O terceiro, chamado Fued, já falecido, era doze anos mais velho e despertava nele um combinado de admiração e inveja branca. Formado na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Fued já morava em São Paulo. Todas as vezes que visitava a família no interior, chegava em casa esbanjando refinamento. Era culto, usava ternos muito bem cortados, gravatas italianas e abotoaduras cintilantes, o que dava a ele um ar soberano sobre os irmãos. A elegância da roupa era potencializada por uma postura ereta, gestos contidos e fala suave, bem pausada, limpa do sotaque marcante do interior paulista, que carrega na pronúncia dos erres. Temer ficava tão encantado com toda aquela formalidade que fez de Fued o seu espelho. Aos 19 anos, já estava matriculado na mesma universidade que o irmão frequentou. Sem ter onde ficar na capital paulista, foi morar na casa do estudante, dividindo quarto com Homar Cais, hoje ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região; Ralph Tórtima, que se tornaria um renomado criminalista. No mesmo cômodo, morava o advogado Luiz Chinaglia.

Certa vez, Cais, Temer e Tórtima resolveram pregar uma peça de gosto duvidoso no roommate. Chinaglia havia chegado ao quarto com uma arma de fogo carregada, que levaria para o pai no fim de semana seguinte, na cidade de Araçatuba. Cais pegou o revólver e atirou três vezes contra um livro de capa dura, dentro do banheiro. A atitude deixou Chinaglia nervoso, despertando risos nos colegas. Foi aí que o trio combinou a pegadinha. Eles trocaram a munição de verdade por balas de festim e esconderam uma pequena bexiga com líquido vermelho sob a roupa de Tórtima. Em seguida, simularam uma discussão por causa da música que tocava no volume máximo no rádio, incomodando quem queria estudar. Cais pegou a arma e se atracou com o amigo, representando uma luta corporal. No clímax da encenação, houve um disparo, ensopando a camisa de Tórtima com o sangue falso. Temer fingia estar apavorado, enquanto Chinaglia, assustado, saiu correndo pelos corredores da casa do estudante vestindo apenas uma cueca, anunciando o suposto assassinato. “Até hoje contamos essa história e damos muita risada”, diz Tórtima.

Não eram só brincadeiras inconsequentes que levavam emoção à vida dos estudantes da Faculdade de Direito. Assim que pisou no pátio da instituição, em 1959, Temer descobriu que o local respirava política. Entre os estudantes, quem não pertencia ao Partido Acadêmico Renovador (PAR), com perfil mais de esquerda, estava no Partido Acadêmico Independente (PAI), com tendência de centro. Temer se filiou à segunda agremiação e concorreu à presidência do Centro Acadêmico, em 1962. Fazia campanha já defendendo independência na atuação dos advogados públicos e autonomia das universidades. A eleição ocorria em 11 de agosto, data de fundação da São Francisco – e que batiza o centro acadêmico. Temer se lançou com o lema “o destino do onze está em suas mãos”. No final dos discursos, apontava o braço para frente para mostrar à plateia o M desenhando pelas linhas da palma da mão, que dizia ser de Michel. A criatividade não rendeu muitos votos e o seu adversário, Oscarlino Marçal, venceu o pleito.

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No mesmo pátio em que de discutia política, também se falava de amor. Temer era considerado pelos amigos um galanteador nato. Como gostava de poesia e já incorporava aos poucos o traço cortês do irmão Fued, ele seduzia as meninas mais pela lábia do que pela beleza. Com essa estratégia, conquistou Maria Isabel, uma aluna bela e bastante popular na faculdade. Após alguns meses de namoro, noivou. Mas nem todos os amigos levaram muito a sério o status do casal, que vivia grudado. Tinham muita afinidade, mas ninguém acreditava que seria eterno. Quando ela se formou, foi morar nos Estados Unidos e Temer ficou solteiro novamente. Passou a investir mais na carreira para só depois pensar em casamento.

Com o diploma de advogado em mãos, Temer montou um escritório em sociedade com os amigos Celso Bandeira de Mello, Dalmo Dallari e Geraldo Nogueira, na década de 1960. Começou a ganhar dinheiro com causas genéricas – naquela época ainda não era comum os advogados atuarem em ramos específicos. Paralelamente, foi professor universitário, procurador-geral e depois secretário de Segurança de São Paulo. Filiou-se ao PMDB e se elegeu deputado federal por três mandatos, além de presidente do partido.

À medida que evoluía na vida pública, Temer assemelhava-se cada vez mais com o irmão Fued. Ele também conseguiu disfarçar o sotaque de caipira e passou a usar ternos clássicos feitos com exclusividade em uma alfaiataria de alta costura, em São Paulo. O traje completo custa entre 9 000 e 12 000 reais, mas o preço de algumas peças que ele encomenda cai pela metade porque Temer costuma levar os tecidos. Ele tem preferência por fios inglês e italiano, como o loro piana, nas cores azul marinho e cinza, que geralmente traz de viagens internacionais. “Justamente por ser de alto padrão, os seus ternos estão sempre bem passados, sem qualquer vinco, mesmo no final do expediente”, diz o alfaiate Carlos Lopes.

Temer também é vaidoso com o cabelo, que está constantemente penteado para trás e fixado com gel moderador, o que passa a impressão que ele acabou de sair do banho a qualquer hora do dia. Ele corta as madeixas há 30 anos no salão do Jassa, em São Paulo, o mesmo cabeleireiro do cantor Ronnie Von e do apresentador Sílvio Santos. Para manter um certo ar jovial, faz reflexo masculino platinado no mesmo salão. No início do ano passado, Temer foi submetido a uma cirurgia para transplante de cabelos com o médico Milton Peruzzo, o mesmo que corrigiu as falhas capilares no tucano Aécio Neves. O peemedebista tirou fios das laterais e implantou na parte superior da cabeça. A pele é tratada pela dermatologista Ligia Kogos, que cobra 780 reais pela consulta. Segundo ela, o presidente tem uma pela muito boa e nunca fez aplicação de botox. “Ele náo é muito chegado a cremes e sai do meu consultório só com uma receita de vitamina C”, entrega.

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Sem nunca ter feito aulas de etiqueta, Temer virou referência em boas maneiras. Quando se senta, costuma cruzar as pernas e repousar as mãos sobrepostas ao joelho. A voz, que já era mansa, ficou aveludada. A postura excessivamente formal fez os marqueteiros classificarem o político de “esfinge acadêmica”. “Como figura pública, ele parece opaco de tão fechado e sombrio”, diz um ex-assessor. Temer já tinha algumas camadas de verniz, em 1964, quando foi trabalhar como oficial de gabinete de José Carlos de Ataliba Nogueira (PSD), que comandava a Secretaria de Educação do estado de São Paulo. Lá, conheceu a primeira mulher, Maria Célia, com quem teve as filhas Luciana, de 46 anos; Maristela, 43; e Clarissa, 41. Em seguida, casou-se com Neuza e não teve filhos. Namorou ainda a jornalista Erica Ferraz, em Brasília, na época que era deputado federal, e teve Eduardo, de 17 anos. Atualmente, está casado com Marcela, 42 anos mais jovem que ele, com quem teve Michelzinho, de 7 anos.

A projeção na vida pública cristalizou a sua maior característica: a de autoridade cerimoniosa, cada vez mais desprovida de calor humano. Quando divulgava o seu livro de poesias, Anônima Intimidade, em 2012, Temer fez uma revelação curiosa. Disse que resolveu publicar os escritos tão íntimos depois que o amigo Gaudêncio Torquato o convenceu de que era uma boa oportunidade para mostrar à população que ele não era uma criatura metálica, sem emoções. A publicação vendeu apenas 2 000 exemplares na primeira edição e a mácula de homem de lata continua até hoje. “Muita gente fala que Michel é um homem frio. Mas quem o conhece de perto sabe que, na verdade, ele permanece aquele garotinho excessivamente tímido que vivia lá no interior. É isso que fez dele um homem com excesso de reservas. Quando éramos criança e chegava visita lá em casa, ele corria para se esconder”, revela o único irmão vivo, Adib Temer.

O mesmo manto que cobre a vida privada de Michel Temer se estende às filhas e ex-mulheres. A única que exerce função pública é Luciana Temer, secretária de Ação Social do petista Fernando Haddad, prefeito de São Paulo. Ela reitera a imagem de homem formal que o pai mantém até mesmo dentro de casa. As filhas, que nunca viram Temer usando chinelo de dedo, eram repreendidas quando falavam qualquer tipo de palavrão ou expressões chulas dentro de casa, até mesmo as mais brandas, como “ai que saco!”. Luciana afirma que o pai sempre foi um homem simples, generoso e muito apegado à família. Quando as filhas eram crianças, por exemplo, ele as levava em um corcel laranja de São Paulo para Tietê, para a mesma chácara onde passou a infância. No trajeto de quase duas horas, recitava poemas, como O Navio Negreiro, de Castro Alves. De tanto ouvir repetidamente o clássico da literatura, as meninas chegavam a decorar o poema inteiro. Luciana diz que o pai é tão simples que ele chega a pedir comida pelo telefone no fim de semana, quando está em sua mansão em São Paulo e ir pessoalmente ao portão atender o motoboy, mesmo tendo seguranças ao seu dispor 24 horas por dia.

Vem de Gilda Sanchez, secretária de Temer há 51 anos, exemplos de como o novo presidente da República é protocolar. Mesmo trabalhando há tanto tempo com ele, nunca ousou entrar em sua sala sem primeiro ligar pedindo permissão, sem bater na porta duas vezes suavemente antes de abri-la e ainda pedir a tradicional licença quando já estiver chegando próximo à sua mesa. O excesso de educação é retribuído. Temer agradece tudo o que se faz e repete a expressão “por favor” como se fosse um mantra. Mas às vezes, dá provas de que tem sangue correndo nas veias. Certa vez, Gilda entregou a ele um ofício datilografado, ele reagiu com rigor. Mas, sem levantar a voz, perguntou: “Quem foi o burro que fez isso?”. Gilda respondeu cabisbaixa que foi ela. Envergonhado por constranger a funcionária, ele se desculpou e pediu que refizesse o documento deixando uma margem branca de quatro dedos para cima para que pudesse receber carimbos e três dedos na esquerda, para que o papel pudesse ser furado e arquivado numa pasta classificadora.

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Os amigos dizem que três coisas o deixam bastante irritado: incompetência, deselegância e traição. No final do ano passado, quando o governo de Dilma Rousseff acumulava uma sucessão de derrotas na Câmara dos Deputados, Temer estava jantando com amigos em sua casa, em São Paulo. No meio da refeição, o seu telefone tocou. Era Dilma aos berros dizendo que ele não conseguia nem conter o PMDB, que não vinha votando a favor do governo. Os gritos tinham tantos decibéis que todo mundo ouviu. Temer ouviu calado até Dilma bater o telefone na sua cara. Minutos depois, ela ligou de volta pedindo desculpas. Ele não disse que aceitava, nem que não aceitava. Falou apenas a seguinte frase: “Estou acostumado a tratar com vários presidentes da República e nenhum deles nunca falou assim comigo. Não vou mais aceitar esse tipo de descortesia”. Desligou e continuou o jantar, que deu origem à famosa carta que Temer enviou à Dilma reclamando que ela o mantinha no governo como um adorno. Com a queda da mandatária, o vice decorativo virou a peça principal da República.

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