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Quando a cantada não é um elogio, mas um crime

Nos primeiros nove meses do ano, a capital paulista registrou dois casos por dia de mulheres que foram à delegacia dar queixa da abordagem ofensiva de homens na rua; denunciar ainda é algo raro, o que ajuda a perpetuar o ato

Por Letícia Cislinschi
14 out 2013, 09h31

A administradora de empresas Patrícia, de 35 anos, estava indo buscar seu filho na escola, na Mooca, Zona Leste de São Paulo, quando um homem que dirigia um carro diminuiu a velocidade perto dela e perguntou quanto ela cobraria por uma relação sexual. “Eu estava em plena luz do dia, em uma rua movimentada e mesmo assim ele se sentiu no direito de fazer uma proposta dessas achando que eu iria gostar”, queixou-se a administradora.

Ela caminhou por quase 100 metros ouvindo o que o homem dizia, quando então se virou e começou andar no sentido contrário. “Ele não tinha como me seguir, porque outros carros estavam atrás dele. Foi aí que ele decidiu gritar, me insultando”, contou Patrícia.

Apesar de absurda, essa não é uma cena atípica na rotina da mulher brasileira. A pesquisa Chega de Fiu Fiu, realizada pelas jornalistas Karin Hueck e Juliana de Faria com 7 762 mulheres em agosto deste ano, revela que 98% já sofreram algum tipo de assédio em locais públicos e 68% foram insultadas depois de não terem correspondido a uma cantada. “Foi horrível. Eu me senti mal e comecei a observar se estava com alguma roupa curta demais, ou se estava me insinuando de alguma forma. Só depois me dei conta de que não importa como eu estivesse vestida, ele não tinha aquele direito”, afirmou Patrícia.

“Eu me senti um lixo”

Eu tinha acabado de estacionar o carro e estava indo para a academia, quando um catador de papelão apareceu por trás de mim e me apalpou. Eu me senti um lixo e muito suja. Nós ficamos vulneráveis nesse tipo de situação – Aline Zam, estudante de turismo, 21 anos

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A titular da 1° Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), no Centro de São Paulo, Celi Paulino Carlota, trabalha há 20 anos com casos de mulheres agredidas verbal e fisicamente. Ela alerta que a vítima não deve, de maneira nenhuma, procurar em si mesma algo que “justifique” o assédio. “Daqui a pouco, vão perguntar para as mulheres estupradas o que foi que elas fizeram para sofrerem a agressão”, afirma. A delegada enfatiza que a mulher é livre para escolher a roupa que quiser, sem que o homem possa usar esse “argumento” para justificar uma cantada, uma passada de mão ou um crime mais grave. O medo, muitas vezes, faz com que elas deixem de usar uma roupa que gostem para evitar o assédio na rua.

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Mesmo consciente de que havia sido vítima de um crime, a administradora não denunciou o abuso e nem contou o que aconteceu a ninguém. Patrícia, aliás, é um nome fictício, pois ela prefere não ter sua identidade revelada. “Eu ainda me sinto envergonhada pelo que aconteceu, mesmo sabendo que não foi minha culpa, é constrangedor”, afirmou. “A situação está tão interiorizada na vida das pessoas, que acabam achando isso natural. Mas não é”, afirmou a delegada Celi, destacando que muitas mulheres acabam não denunciando os casos.

Contravenções penais

Importunação ofensiva ao pudor: Importunar alguém em lugar público. Xingar de forma que fira o pudor da mulher. Pena de multa

Perturbação da tranquilidade: Molestar alguém ou perturbar-lhe a tranquilidade, por acinte ou por motivo reprovável. Pena de detenção ou multa

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Crimes

Injúria: Insultar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou a honra de forma gravíssima. Pena de detenção ou multa

Ato obsceno: Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público. Pena de detenção ou multa

Denúncias – Na capital paulista existem nove Delegacias de Defesa das Mulheres que, entre outros casos, registram as importunações ofensivas ao pudor, perturbações da tranquilidade, injúrias e atos obscenos – crimes e contravenções penais nos quais se podem enquadrar os homens que fazem abordagens ofensivas a mulheres na rua. A reportagem de VEJA percorreu todas elas entre os dias 23 e 27 de setembro e conseguiu os dados com apenas quatro unidades: Centro, Oeste, Leste e Sul.

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As outras unidades informaram que os dados só poderiam ser obtidos através da Secretaria de Segurança Pública, que, por sua vez, afirmou não ter números para esses casos específicos. A assessoria de imprensa da Delegacia da Mulher também não tem os registros desmembrados. As denúncias dessas abordagens podem ser realizadas em qualquer delegacia.

Para a advogada especializada em causas da mulher Luiza Eluf, a ausência de levantamentos oficiais impossibilita traçar um plano adequado de combate à violência contra a mulher. “Você precisa saber o tamanho do problema para saber as medidas que serão adotadas. Essa falha demonstra que as ofensas dirigidas à mulher são vistas como algo de menor importância.”

Mesmo com o déficit de informação, foram protocoladas 571 denúncias desse tipo nos últimos nove meses nas delegacias da mulher e do Metrô (Delpom), que registra as ocorrências dentro dos transportes públicos sobre trilhos da Grande São Paulo. São dois casos por dia, e a maior parte acontece na Zona Leste de São Paulo. Nos últimos nove meses, a DDM da região registrou 275 casos de assédio de mulheres na rua, sendo 248 de injúria, vinte de perturbações da tranquilidade, seis importunações e um ato obsceno.

“Comecei a chorar de raiva”

Eu estava na Linha 3 – Vermelha do metrô, quando um homem se aproximou e disse no meu ouvido que sempre quis saber como é ter relação com uma negra. Eu o empurrei e comecei a chorar de raiva. Ele saiu do vagão rindo e passando a língua na boca. – Núbia Anacleto, universitária, 23 anos

A Delpom é a segunda no ranking de denúncias com um total de 138 casos em nove meses. O maior número é de importunação ofensiva ao pudor, com 74 ocorrências, além de treze atos obscenos, dezenove perturbações do sossego e 32 injúrias. Até agosto, duas pessoas haviam sido estupradas dentro da área do transporte metroviário. A delegacia da Zona Sul fica em terceiro lugar na relação de denúncias, com 102 delitos no total, seguida pela unidade do Centro, com 47 e da Zona Oeste, com apenas nove.

Investigação – A delegada titular da 2° DDM, na Zona Sul, Vanderlene Suedy Bossan, explicou que não é necessário saber o autor da agressão para fazer a denúncia. “Nós temos obrigação de investigar todos os casos. Podemos requisitar as imagens, seja de câmeras da prefeitura, de edifícios próximos ao local. Assim levantamos a placa do carro e as características físicas do homem”, explicou.

A titular também destaca importância de as mulheres contarem a íntegra do caso para evitar que os criminosos tenham sua pena ainda mais suavizada. “Às vezes, a mulher chega aqui com vergonha de falar do que foi xingada, mas nós precisamos saber porque, dependendo da ofensa, podemos incluir quatro ou cinco contravenções no Boletim de Ocorrência, e as penas se somam”, explica Vanderlene.

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“Me senti um pedaço de carne”

Quando estava saindo do trabalho, três homens que estavam fazendo manutenção dos fios da rua começaram a mexer comigo e com uma amiga nos chamando de filé, gostosa e outros insultos. Me senti um pedaço de carne e fiquei com nojo e muita raiva do que tinha acontecido. Achei uma grande falta de respeito. – Isadora de Campos, revisora publicitária, 22 anos

O Metrô informou que os delitos podem ser denunciados a qualquer agente de segurança para identificar o autor do crime e encaminhar as partes à delegacia. Além disso, as áreas são equipadas com câmeras de segurança que podem auxiliar na identificação do infrator.

Cultura – Para a advogada Luiza Eluf, a presença de termos ofensivos a mulher e de ideias preconceituosas no cotidiano propagam a desigualdade entre os sexos. A advogada afirma que faltam campanhas para alertar que cantadas e atos obscenos contra a mulher são crimes, e que as vítimas devem denunciar. “Aliado a maior atenção da polícia para o fato, é necessário inserir campanhas educativas sobre o tema nos veículos de comunicação. Apesar de os homens saberem que essas abordagens são ofensivas, eles precisam ser lembrados e repreendidos por isso.”

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