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Os gigantes de Santa Maria

Voluntários e redes de solidariedade ajudam a cidade a suportar a dor da tragédia. Em um só dia, 110 enterros foram realizados no cemitério Santa Rita

Por André Eler, Marcelo Sperandio e Leslie Leitão, de Santa Maria
2 fev 2013, 18h07

Na manhã da última segunda-feira, o silêncio tomou a rua dos Andradas, uma das mais movimentadas do centro de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. O local que ficará para sempre marcado pela tragédia da boate Kiss, onde morreram 235 jovens, parecia congelado no tempo. Nenhuma palavra era ouvida na calçada que recebeu os corpos, no dia seguinte ao desastre. Os choros e gritos de desabafo de mais de 1.000 parentes e amigos estavam concentrados em três cemitérios a poucos quilômetros dali. De um dia para o outro, 110 corpos foram enterrados – tradicionalmente, não mais que cinco sepultamentos ocorrem na cidade de 260.000 habitantes. A força da tragédia parece ter se propagado em ondas, e parece impossível encontrar alguém que não tenha sofrido de alguma forma o impacto da madrugada de 27 de janeiro. Alisson Souza, o administrador do Cemitério de Santa Rita, contava, após os enterros, a sua participação na cadeia de acontecimentos iniciados com uma rotineira exibição de fogos de artifício em um templo da diversão dos jovens de Santa Maria. “Esgotamos as nossas covas de emergência e contratamos nove funcionários extras”, dizia.

Corpos foram enterrados lado a lado, com a ajuda de 150 militares e voluntários. Houve casos de pessoas que cederam jazigos para familiares de vítimas que não tinham onde sepultá-las. Do lado de fora dos cemitérios, ônibus e táxis circulavam pelo município com fitas pretas penduradas no retrovisor. O luto invadiu Santa Maria. Mas a face mais visível desse sentimento compartilhado nas ruas era o da solidariedade.

É certo que nenhuma cidade jamais terá capacidade prevista para lidar com acontecimentos como o da boate Kiss – assim como Nova York jamais poderia resistir de forma satisfatória à derrubada das Torres Gêmeas ou o estado do Rio conseguiria lidar de forma natural com os 1.000 mortos e desaparecidos da enxurrada na Região Serrana, em 2011. Santa Maria demonstrou, desde os primeiros minutos após o fogo, que os esforços individuais, as redes de voluntariado e o trabalho incansável de anônimos tornam a cidade maior do que se supõe.

A única Unidade de Pronto Atendimento (UPA) da cidade estourou a sua capacidade minutos depois da catástrofe. Médicos, enfermeiros e estudantes da área de saúde que estavam de folga foram convocados às pressas – e não demoraram a aparecer. Não foi o suficiente. Mesmo com a equipe em dobro, cada profissional tinha de se desdobrar. O recepcionista da UPA Murilo Santos, de 20 anos, completou as 12 horas de seu plantão às 7h de domingo. Por conta própria, e sem receber horas extras, Santos esticou o trabalho até as 13h. Naquela madrugada, o movimento na UPA foi o quíntuplo do habitual. “Em um dia, eu vi mais famílias chorando do que em um ano inteiro de atendimento de emergência”, disse. Ele próprio perdeu três amigos de infância no incêndio. Outro está internado.

As emissoras de rádio locais foram os primeiros veículos de comunicação a noticiar a tragédia, na manhã de domingo. Seus profissionais logo pediram à população doações de sangue e de remédios. Deu certo. No fim do dia, o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, anunciou que os bancos de sangue estavam lotados e que a necessidade de medicamentos estava suprida. Só no Centro Desportivo Municipal (CDM), para onde os corpos foram levados e identificados, 500 pessoas se cadastraram como voluntárias. A empresa de ônibus Planalto ajudou a catapultar esse número. Cedeu cinco ônibus de viagem para levar voluntários de Porto Alegre para Santa Maria. Entre domingo e segunda, 200 pessoas foram transportadas gratuitamente.

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Quem organizou a chegada de voluntários e de doações ao CDM foi o servidor da prefeitura Jóbson Frassão. Ele se apresentou para cooperar às 8h de domingo, cinco dias depois de uma cirurgia que tirou um melanoma de seu pescoço. Frassão contrariou a recomendação médica de repousar por três semanas. Ele tem um filho de 17 anos que desistiu de ir à Kiss minutos antes do início da festa. “O meu menino poderia estar entre os feridos ou mortos. No meu caso, é uma obrigação ter empatia com os familiares”, afirma Frassão, sem piscar os olhos, sempre marejados. “A imagem de um ginásio de 50 metros de comprimento tomado por corpos de jovens foi assustadora. Não consigo dormir sem pensar nisso antes”. No CDM, Frassão recebeu e orientou pessoas como a fonoaudióloga Carla Viegas, que passou todo o domingo e a segunda acompanhando a identificação de corpos e os velórios. Sua função era a de consolar e ouvir os parentes de mortos. Viegas tem dois filhos, um de 20 e outro de 22 anos, que, de tão assíduos na Kiss, têm a carteira VIP da boate. Os jovens teriam um aniversário lá, mas, na véspera, o local da comemoração foi alterado.

Os ginásios do CDM viraram uma espécie de centro de operações da prefeitura, da Defesa Civil e da Cruz Vermelha. Ali também chegavam carros, ônibus e caminhões com doações de todos os estados do Brasil. No total, seis toneladas de donativos foram enviados. Entre eles, 15.000 litros de água, 115 litros de leite, 400 quilos de açúcar, 120 quilos de café em pó e 500 pacotes de biscoitos. Santa Maria tem duas lanchonetes da rede McDonald’s que, juntas, doaram 5.000 sanduíches. Esses mantimentos foram usados para servir as 1.500 pessoas que estiveram no CDM para reconhecer os corpos. O estudante de administração Fernando Rodrigues, de 29 anos, se registrou como voluntário. Inicialmente, serviu água, café e biscoitos aos familiares de vítimas. Em seguida, catou lixo. Depois, lavou os corpos e os colocou nos caixões. Na terça-feira, o estudante foi dar auxílio ao Hospital de Caridade, onde estão os últimos sobreviventes e seus familiares. Lá, ele conheceu a aposentada Maria Guazina, de 72 anos. Guazina foi até o saguão do hospital para colar em uma parede um pedaço de papel com o seu nome, endereço e telefone. “Ofereço a minha casa para receber qualquer sobrevivente e familiar que não seja daqui e que queira tomar um banho, almoçar e dormir”, dizia a aposentada, mostrando a chave de casa.

As ações de solidariedade se multiplicavam de tal forma que parecia ser o padrão, uma cidade não tão minúscula a ponto de todos se conhecerem, mas que em vários momentos parecia habitada exclusivamente por amigos próximos. Independentemente de credos, afinidades ou opiniões, todos em Santa Maria são moradores do lugar que amanheceu no último domingo com uma pilha de corpos de jovens recém-saídos da adolescência, mortos em alguns minutos durante uma festa de universitários.

A contagem de corpos do dia da tragédia daquela madrugada só foi oficialmente encerrada ao meio-dia do domingo – outras vítimas morreram ao longo da semana, intoxicadas por terem inalado a fumaça tóxica que sufocou a boate Kiss. A última busca por corpos no prédio revirado da rua dos Andradas deu início à segunda fase do trabalho. O Instituto Médico Legal, o destino comum de corpos para serem identificados, tem duas mesas, uma maca e câmara fria para dois corpos. Pela manhã, o número confirmado de mortos já passava de 230.

Na tarde de domingo, o calor de mais de 30 graus castigava quem esperava na fila que se formou do lado de fora do CDM, que se tornou o coração da cidade, o único lugar onde parecia haver barulho e movimento em Santa Maria (embora já houvesse também algum nos hospitais). Aos poucos, os familiares começaram a ser liberados para entrar no complexo esportivo. Os ginásios do local se tornaram, ao mesmo tempo, IML, funerária, salão de esperas, e centro de operações. Em um deles, os familiares das possíveis vítimas esperavam a confirmação da lista de mortos, gritada no sistema de som – quase todos, jovens de até 30 anos; mais de 100 deles eram alunos da Universidade Federal de Santa Maria. Os mais de 200 mortos foram organizados, no chão, pelo sexo: homens de um lado, mulheres de outro. Quase todos os rapazes foram identificados, porque carregavam documentos nos bolsos. As mulheres, em geral, haviam deixado suas bolsas para trás. Celulares e documentos foram colocados no peito dos mortos. Pela manhã, os celulares que as vítimas carregavam insistiam em tocar, enquanto seus donos estavam com membros inertes, rostos pretos pela fumaça do incêndio, com machucados pelo corpo. A lona não cobria todos os corpos. Treze legistas e treze auxiliares (bem mais que os 15 funcionários do IML local, porque legistas de outras cidades da região se ofereceram para ajudar ou foram convocados pelo governo estadual) faziam exames externos, pulsões suprapúbicas e pulsões cardíacas – o alto nível de monóxido de carbono no sangue deverá confirmar a estimativa de que 90% das pessoas morreram por asfixia.

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Liberados pela perícia, os mortos eram carregados para um terceiro ginásio anexo, onde dezenas de caixões já tinham sido destacados para os velórios. Familiares e funcionários de funerárias dividiam o espaço onde os mortos recebiam alguns cuidados antes de serem velados. Policiais cuidavam das portas, barrando a entrada da imprensa ou de curiosos. No ginásio onde ficaram os cadáveres, nem familiares e voluntários conseguiam entrar com facilidade. Um caminhão frigorífico do exército também foi deslocado para o ginásio para ajudar na conservação dos corpos. Os últimos a ser liberados foram guardados nesse caminhão até próximo de meia-noite, quando só sobrou um: de uma menina do Mato Grosso, cujos pais só puderam liberá-la na segunda, depois de viajarem para Santa Maria.

Uma das salas anexas ao ginásio principal se tornou centro de comando, onde se reuniam Defesa Civil, Brigada Militar, Polícia Civil, Exército, Aeronáutica, Secretaria de Saúde, promotoria, representantes da prefeitura, representantes parlamentares, para definir ações, prioridades, informar novos números de mortos e hospitalizados – o chefe da defesa civil estadual, coronel Oscar Luis Moiano, e o comandante do Batalhão de Operações Especiais, major Cleberson Bastianello, faziam a função de porta vozes dessa cúpula que tomavam as principais decisões no CDM. Outra virou sala para coletivas de imprensa ou para reuniões do grupo de psicólogos voluntários. Um dos acessos à quadra se tornou centro médico improvisado, para dar um breve atendimento a quem passasse mal com uma notícia trágica e, se fosse o caso, encaminhar a pessoa para uma das ambulâncias à disposição do CDM (as vítimas do incêndio já tinham ido para os hospitais ou para casa, já que alguns só tiveram complicações pulmonares depois). Outra sala, ainda, se tornou stand das quatro funerárias da cidade. As quatro fizeram 110 velórios em Santa Maria entre domingo e segunda. Só uma delas, a AM Brum, fez 30, quando a média é de 3 para cada dois dias. Não havia capelas para velórios – alguns aconteceram em Centros de Tradições Gaúchas (CTGs), outros em escolas, em várias igrejas, no ginásio do CDM ou até nos saguões das capelas dos cemitérios. O Parque Jardim Santa Rita, que tem cinco capelas, tinha 14 velórios na noite de domingo. As coroas de flores não foram suficientes – uma das soluções encontradas foi fazer coroas com flores artificiais – era possível ver várias dessas sobre os túmulos. Para que os enterros acontecessem, os coveiros tiveram que abrir novas covas e liberar espaços em túmulos. Nos cemitérios municipais, 79 pessoas foram enterradas na segunda, em vez das habituais cinco por dia – e houve sepultamentos até depois das 20 horas. Os outros mortos, em grande parte universitários que estudavam em Santa Maria (só a UFSM perdeu 114 alunos), foram velados e sepultados em suas cidades natais.

Parecia improvável que uma cidade de 260 000 habitantes conseguisse enfrentar uma situação em que, numa só noite, morreu quase uma pessoa para cada grupo de mil. Alguns fatores subverteram essa lógica. Santa Maria tem bases do Exército e da Aeronáutica, com um efetivo de mais de 8.000 militares rapidamente mobilizado para dar assistência à operação que se seguiu à tragédia, que facilitaram a chegada de informações até o governo federal. A aeronáutica conseguiu fazer, no início da tarde, as primeiras transferências de feridos para Porto Alegre – no dia 29, o número de pessoas hospitalizadas na capital gaúcha já era maior que a quantidade em Santa Maria, o que também serviu para liberar leitos para novas entradas de intoxicação pela fumaça. A cidade onde ocorreu a tragédia também é um polo universitário, com uma rede hospitalar mais extensa do que a de cidades de mesmo porte – são seis hospitais, um pronto-atendimento e uma UPA 24 horas -, e 30.000 estudantes de nível superior, que se juntaram ao exército de voluntários. Além disso, apenas metade dos mortos era de santa-marienses – um fator essencial para desafogar os cemitérios da cidade no dia 30, quando quase todas as vítimas foram enterradas. O principal fator para que a cidade enfrentasse a maior crise de sua história, no entanto, parece ter sido o sentimento de que era preciso seguir em frente, com tristeza, mas altivez. O major Pedro Carlos, da Aeronáutica, que participou das operações do CDM arriscou uma explicação para a força da população. “O povo gaúcho não espera o poder público. Faz acontecer”, disse.

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