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O drama dos brasileiros barrados pela nova política de imigração de Trump

Flagrados ao tentar entrar de forma ilegal nos Estados Unidos, eles são enviados a abrigos no México ou despachados de volta para cá em voos fretados

Por João Pedroso de Campos Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 9 mar 2020, 11h33 - Publicado em 6 mar 2020, 06h00

Ao embarcarem em Belo Horizonte com destino à Cidade do México para iniciar uma longa, perigosa e incerta jornada, Jones Silva de Brito, de 35 anos, e Tânia Costa Oliveira, 32, carregando a tiracolo uma filha de 6 anos, deixaram para trás as poucas perspectivas profissionais (ela trabalhava por aqui como cabeleireira, enquanto ele tinha acabado de perder o emprego de carregador de caixas) e as muitas ameaças de uma agiota pelo não pagamento de um empréstimo para erguer a casa própria, cuja construção acabou atrasando e consumindo antes do tempo as reservas destinadas à obra. Depois de uma espera de três dias em um hotel, eles encararam 24 horas de estrada até Ciudad Juárez, a última parada antes dos Estados Unidos. No fim da manhã de 22 de janeiro, realizaram uma rápida travessia a pé pelo Rio Grande, com água pelos tornozelos, até a terra prometida. A epopeia terminou em desilusão: depois de cinco dias detida pelas autoridades americanas, sem maiores explicações, a família foi colocada em um ônibus e levada de volta para Ciudad Juárez. “Quando soube que ia ficar no México, bateu um desespero e comecei a chorar”, conta Tânia. Ao lado de outros 100 brasileiros e de muitos outros latinos, os mineiros aguardam — com pouquíssimas chances de sucesso — na Casa del Migrante, albergue mantido pelo governo local, a decisão que determinará se poderão ou não realizar seu sonho: viver nos Estados Unidos.

Nunca foi fácil atravessar a fronteira entre o México e os Estados Unidos. Desde o começo do ano, porém, os brasileiros que tentam acessar clandestinamente o território americano vêm enfrentado uma barreira a mais na conquista da América: uma mudança na regra. Até pouco tempo atrás, quem conseguisse cruzar o Rio Grande entregava-se às autoridades de lá, ingressando imediatamente com um pedido de asilo ao chegar, em uma prática conhecida como “cai-cai”. Passados vinte dias, o prazo máximo que famílias com menores de idade podiam ficar detidas, um magistrado geralmente permitia a entrada no país, desde que elas se apresentassem à Corte periodicamente, até o caso ser julgado. Na prática, abriam-­se as portas para a imigração ilegal, pois a condição raramente era cumprida. Os “coiotes”, como são conhecidos os agenciadores que conduzem os imigrantes pelas áreas da fronteira, vendiam seus serviços às famílias no Brasil com a promessa de tirar proveito dessa brecha na legislação. “Eles diziam às pessoas que elas teriam um ‘probleminha’ na chegada, mas acabariam soltas em seguida, podendo ir para onde quisessem nos Estados Unidos”, afirma Nestor Forster, indicado pelo presidente Jair Bolsonaro à embaixada brasileira nos Estados Unidos (ele será submetido à sabatina no Senado em data ainda não definida pela Comissão de Relações Exte­riores do Congresso).

A VIDA NO ABRIGO – A Casa del Migrante: colchonetes no chão em dormitório coletivo e toque de recolher à noite (./Arquivo pessoal)

A prática do “cai-cai” começou a ficar mais perigosa em 2019, quando o governo Trump criou os Protocolos de Proteção ao Migrante (MPP, na sigla em inglês), também conhecidos como o programa “Fique no México”. De acordo com as novas regras, imigrantes que entraram nos Estados Unidos atravessando a fronteira sul são “devolvidos” e precisam aguardar em território mexicano a decisão sobre o pedido de asilo. Essa definição pode demorar meses, e a possibilidade de uma resposta positiva é remota: apenas 1% dos pedidos recebe aprovação. Em 29 de janeiro de 2020, a novidade nada auspiciosa: Trump incluiu os brasileiros nesse programa. Desde sua implementação, o MPP tem sido alvo de denúncias por expor as famílias com menores de idade a um ambiente de violência. Um levantamento da ONG Human Rights First identificou mais de 1 000 casos de sequestro, tortura, estupro e assaltos contra imigrantes enviados ao México. Ciudad Juárez, para onde eles são transferidos, já foi considerada na década de 90 do século passado uma das cidades mais perigosas do mundo (e não melhorou muito desde então). Ali, a rotina dos hóspedes da Casa Del Migrante é restrita às refeições diárias, brincadeiras com os filhos no pátio e, no máximo, idas a comércios nas imediações. Por volta das 20 horas, todos os dias, os abrigados devem se recolher para dormir. No último dia 28, houve um clima de comemoração com o anúncio de uma decisão de três juízes de uma Corte de São Francisco que suspendeu o MPP. A euforia durou apenas algumas horas, até que o governo federal ganhou um recurso contra a medida. “Brasileiros, guatemaltecos e hondurenhos fizeram festas, orações, agradeceram… Depois, ficou todo mundo triste, sem saber o que fazer”, relata a mineira Tânia Oliveira.

Enquanto os brasileiros amargam em Juárez os efeitos do programa “Fique no México”, os compatriotas que conseguiram furar a barreira e vivem ilegalmente nos Estados Unidos (mesmo aqueles que estão há anos lá) nunca correram tantos riscos como agora. Em uma mudança de política em relação aos governos anteriores, o presidente Jair Bolsonaro aceitou facilitar as regras de deportação. Em outubro de 2019, o Palácio do Planalto autorizou o despacho para cá, em voos fretados, de brasileiros presos na fronteira — algo não permitido anteriormente, pois o sistema era considerado degradante para as pessoas. Agora, elas têm sido deportadas em massa depois de passar por provações em prisões americanas que pretendem desencorajar a migração. A comida, por exemplo, resume-se a burritos, batatas chips e maçãs. Debaixo de um ar-condicionado inclemente, que torna o ambiente extremamente gelado, cada imigrante tem direito a uma manta térmica de alumínio e dorme no chão. Celas com capacidade para quinze pessoas abrigam 35, e as das mulheres são apinhadas de crianças, com pessoas dormindo ao lado do vaso sanitário. Após essa desagradável temporada, o bilhete de volta. Desde outubro, seis aviões decolaram do Texas e pousaram em Belo Horizonte trazendo mais de 400 imigrantes presos na fronteira. Na sexta 6, estava previsto o sétimo desembarque do tipo, com 58 passageiros. O destino é sempre Minas Gerais porque a maior parte dos deportados vem do estado.

ALIADOS – Bolsonaro e Trump: pressão americana para o endurecimento das regras (Brendan Smialowski/AFP)

Cada voo fretado custa cerca de 230 000 dólares, mas o valor é um fator menos importante para as autoridades americanas. Mais tolerantes com os imigrantes brasileiros no passado, os Estados Unidos começaram a ver o Brasil como porta de entrada para ilegais de outras nações. “O país tem sido um canal para que pessoas mesmo de fora do Ocidente cheguem aos Estados Unidos. As nações da América Central estão policiando as próprias fronteiras, protegendo melhor sua soberania. Esperamos ver o Brasil fazer mais isso, além de expe­dir o retorno de brasileiros que vieram para cá ilegalmente. Essa é uma parte importante de ser um bom aliado”, cobrou o vice-secretário de Segurança Interna dos Estados Unidos, Ken Cuccinelli, dois dias antes da mudança que afetou os brasileiros. Tais declarações, que poderiam ter sido muito mal recebidas no passado, foram polidamente obedecidas pelo Itamaraty. O “bom aliado” Bolsonaro já declarou que “a maioria dos imigrantes não tem boas intenções”, e seu filho Zero Três, Eduardo, outrora cotado para ocupar a embaixada em Washington, chegou a dizer que “brasileiro ilegalmente fora do país é problema do Brasil, é vergonha nossa”.

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Antes da aplicação oficial do programa aos brasileiros e da abertura para as deportações em massa, o governo Trump já vinha endurecendo sua política de barrar os migrantes que saíam daqui. De acordo com dados do Departamento de Alfândegas e Proteção das Fronteiras dos Estados Unidos para o ano fiscal de 2019, 17 893 brasileiros foram presos nas fronteiras com o México, salto de 1 090% ante os 1 504 de 2018. Números parciais entre outubro de 2019 e 31 de janeiro de 2020 mostram 5 576 detenções nessas regiões. Apesar do crescimento exponencial no total de prisões, o número de deportações variou apenas 4,7% no mesmo período, de 1 691 para 1 770. “As pessoas eram detidas na fronteira, mas muita gente ainda entrava”, explica um diplomata com posto nos Estados Unidos a respeito do descompasso. Membros do Itamaraty avaliam que a inclusão no MPP deverá, no entanto, refletir-se em ainda mais deportações de brasileiros do território americano daqui por diante. Entre outubro de 2019 e fevereiro de 2020, 947 já haviam sido deportados. Se a média se mantiver até o fim do atual ano fiscal, em setembro, o número de 2019 será superado em quase 30%.

BARREIRA – Guarda na fronteira com o México: o governo do país colabora com os Estados Unidos para conter a imigração (Guillermo Arias/AFP)

Além de levarem em conta o desemprego no Brasil e a perenidade de um baixo crescimento econômico, especialistas atribuem a evolução dos números a dois fatores. Um deles é o sentimento de “agora ou nunca” dos imigrantes diante da retórica de Trump, que inclui a construção do famigerado muro na fronteira entre Estados Unidos e México. Um número maior de pessoas começou a se arriscar mais “enquanto é tempo”. O outro fator é a mudança no radar dos “coiotes”, os criminosos que vivem de contrabandear os estrangeiros para dentro do território americano. Recentemente, eles expandiram sua atuação no Brasil para além de Minas Gerais, tradicional polo de imigração para os Estados Unidos, depois que o governo do México dificultou a entrada no país via Guatemala. Um dos estados mais visados pelos criminosos atualmente é Rondônia. “Os ‘coiotes’ são invisíveis, mas acessíveis. Nessas cidades, basta começar a falar do desejo de ir para os Estados Unidos que rapidamente alguém passa o telefone de um desses caras”, diz a socióloga Sueli Siqueira, da Universidade Vale do Rio Doce, estudiosa das migrações de brasileiros para os EUA.

No caso dos brasileiros que foram mandados de volta para o México, as sessões que definirão a entrada ou não deles em solo americano estão marcadas para o fim de abril. Enquanto isso, o governo mexicano lhes fornece documentos que permitem matricular filhos em escolas e ter acesso a assistência médica. A promotora de vendas L.P.S., 32 anos, viajou de Goiânia com o filho de 14 anos e alega sofrer ameaças do ex-marido para conseguir asilo. “Eu vou esperar até abril, porque não posso voltar para o Brasil. Sou divorciada há sete meses, e ele me batia muito”, explica. Por meio de um “coiote”, L. gastou 20 000 reais no percurso Goiânia-Ciudad Juárez. A exemplo de outros compatriotas, ela saiu daqui pouco antes da inclusão do país no programa mais rigoroso, com o objetivo de se estabelecer em Boston, onde vivem aproximadamente 350 000 brasileiros. A maioria dos imigrantes ouvidos por VEJA viajou na semana anterior à mudança nas regras e relata ter sabido da novidade quando eles já estavam detidos em El Paso. “Meu irmão disse que tinha lido em algum lugar sobre esse assunto, mas o ‘coiote’ falou que ‘não podemos confiar nessas coisas de internet’”, afirma Maria de Fátima Silva, de 27 anos, desempregada que partiu de Carmo do Paranaíba (MG) com uma filha de 3 anos, dois irmãos e dois sobrinhos. Ela também está no albergue em Ciudad Juárez e pretende voltar quanto antes para o Brasil, sem esperar a decisão do juiz de imigração. “Meu sonho americano foi por água abaixo”, lamenta.

flagra Estrangeiros detidos na tentativa de atravessar a fronteira: mais rigor (John Moore/Getty Images)

As histórias de frustração e as péssimas experiências na tentativa de imigração, no entanto, não tiraram o ânimo de todos os brasileiros que se lançaram à aventura americana. No avião que pousou em Confins em 14 de fevereiro, o técnico de informática Fabiano Xavier Comelli, morador de Buritis (RO), preso por 22 dias com a mulher e dois filhos em El Paso, disse ter ouvido de quatro passageiros que eles procurarão entrar novamente nos Estados Unidos. “A turma falou que vai tentar atravessar pelo deserto”, contou. Outro recém-­deportado, Allan Silva, de 25 anos, morador de Governador Valadares, buscará convencer a mulher a fazer uma nova tentativa no futuro. “Ela ficou traumatizada com a experiência”, conta. “Mas, por mim, se tiver oportunidade de voltar pra lá, eu voltarei sim”, garante. Infelizmente, o desejo de uma vida perfeita na América seduz mesmo aqueles que acabaram de experimentar um autêntico pesadelo. Se a mesma obstinação fosse empregada por aqui, talvez o Brasil fosse diferente.


SONO, FOME E DOENÇAS

(Alexandre Mota/O Tempo/Futura Press)

“Tratavam a gente como lixo. Fiquei sem dormir, tínhamos de comer com as mãos e minhas filhas adoeceram e emagreceram muito. Permanecemos presos por 27 dias. Havia trinta pessoas em um lugar onde só cabiam dez, tinha gente até debaixo do vaso sanitário. Saímos de lá direto para o voo fretado que nos trouxe de volta para o Brasil. Meu marido diz que não deseja essa experiência ‘nem para um cachorro’.”

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Luciene Vargas, de Rondônia


O SONHO ACABOU

(Gustavo Baxter/Nitro)

“Fechei um pacote de 48 000 reais com um ‘coiote’ para que ele me ajudasse a atravessar a fronteira. Pretendia devolver o dinheiro quando começasse a trabalhar em Boston. Para conseguir asilo nos Estados Unidos, meus amigos haviam me instruído a falar que eu estava sendo ameaçado por causa de dívidas, mas desisti quando conversei com brasileiros na imigração. Disseram que eu seria mandado ao México. Acabei sendo deportado direto para o Brasil. O sonho americano acabou para mim.”

Gilliard Machado, de Minas Gerais


TRATADO COMO MARGINAL

(Gustavo Baxter/Nitro)

“Eu já havia morado de forma ilegal nos Estados Unidos entre 2004 e 2009, em uma época em que ninguém deportava em massa os brasileiros, como está acontecendo hoje. Voltei para casa de forma voluntária e fui preso agora, quando tentei atravessar a fronteira de novo com a minha mulher e os dois filhos. Na hora da prisão, o policial americano disse que seríamos tratados como marginais e que não teríamos direito a nada. Assinei a deportação no dia seguinte. Daqui a alguns anos, vou tentar de novo.”

Charles Pereira, de Minas Gerais

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Com reportagem de Joana Suarez

Publicado em VEJA de 11 de março de 2020, edição nº 2677

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