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No mato e nos cafés

Uma excelente biografia do marechal Rondon, escrita pelo jornalista americano Larry Rohter, dá ao brasileiro a dimensão que sempre lhe foi negada

Por Lúcia Guimarães, de Nova York
Atualizado em 26 abr 2019, 07h00 - Publicado em 26 abr 2019, 07h00

Quando historiadores de língua inglesa criticam a onipotência de seus pares ao reavaliar o passado, usam o termo presentism (“presentismo”). “É o hábito de olhar para trás com os olhos do presente”, diz Larry Rohter, autor do excelente Rondon, uma Biografia, volume que examina em detalhes, fruto de minuciosa pesquisa, a vida épica do marechal Cândido Mariano da Silva Rondon e reescreve o papel do explorador brasileiro na etnografia mundial. Rondon morreu em 1958, aos 92 anos, mas a crônica de suas mais de sete décadas de serviço, acredita o biógrafo, sofreu do olhar torto do “presentismo”. Rohter, de 69 anos, escapa dessa armadilha. Ele tem 46 anos de convivência com o Brasil, onde chefiou o escritório do The New York Times, de 1999 a 2007. Rondon é seu terceiro livro sobre o país. O autor é conhecido também pela distinção de ter sido alvo, em 2004, de uma ordem de expulsão do então presidente Lula, inconformado com uma reportagem sobre suas preferências etílicas.

RONDON, UMA BIOGRAFIA,  de Larry Rohter (tradução de Cássio de Arantes Leite; Objetiva; 584 páginas; 94,90 reais) (./.)

Rondon abre com uma poderosa descrição da chegada de dezenove homens estropiados à confluência de dois rios na Amazônia, em abril de 1914. Era a conclusão da Expedição Roosevelt-­Rondon, que quase custou a vida do ex-­presidente americano Theodore Roosevelt e matou três de seus membros, ao longo de dois meses de perigos, privações e doenças para mapear o então chamado Rio da Dúvida, em Rondônia. O centenário da expedição despertou um renovado interesse pelo brasileiro explorador, cientista, ambientalista e fundador do SPI, o Serviço de Proteção aos Índios. No entanto, o interesse renascido pelo personagem foi incapaz de corrigir a injustiça histórica com o mirrado coronel caboclo que posa nas fotos triunfais ao lado de Roosevelt. O grande mérito do trabalho de Rohter é pôr Rondon em seu devido lugar de destaque. O biógrafo não mede palavras para explicar a tímida relevância internacional do brasileiro. Para Rohter, o racismo no Hemisfério Norte é a principal explicação para Rondon não figurar lado a lado com exploradores do panteão mundial, como os britânicos Ernest Shackleton (1874-1922) e Francis Burton (1821-1890). “Quase todos os grandes são de origem europeia ou americana, altos, brancos e louros”, diz Rohter. “A glorificação dos exploradores mais celebrados é fruto do colonialismo ou do imperialismo que deram impulso às viagens. O projeto de Rondon, mameluco descendente de bororos e terenas, era nacional e fugia do modelo extrativista.”

DESCONFIANÇA - Getúlio (à esq.) e o explorador tinham relação de amor e ódio (./.)

É difícil compreender como Rondon ainda não havia sido objeto de uma biografia ampla em língua estrangeira, depois de ter sido vastamente elogiado por Theodore Roosevelt, de ter recebido uma nomeação para o Nobel da Paz feita por Albert Einstein e de ter servido de inspiração para o trajeto do antropólogo estruturalista Claude Lévi-­Strauss entre as tribos amazônicas, relatado em Tristes Trópicos, na década de 50. O livro de Rohter ainda está sendo editado para uma eventual publicação nos Estados Unidos.

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A reputação de Rondon contorceu-se aos ventos políticos e culturais ao longo do século XX, e mesmo no fim do século XIX. De ideias abolicionistas, Rondon participou ativamente, ao lado de Benjamin Constant, porta-voz e símbolo da filosofia positivista formulada pelo francês Auguste Comte, do golpe republicano que derrubaria dom Pedro II, o derradeiro imperador do Brasil. É fascinante o detalhamento de Rohter daquilo que ele chama de “única revolução positivista da história”, que culminaria com o fim do Império brasileiro. “Sabíamos que Rondon foi positivista, mas não se conhecia a extensão dessa filosofia como guia de sua vida cívica até a morte”, revela. “No caso dos índios, a teoria positivista considerava os povos indígenas irmãos dos europeus, não inferiores, apenas em outro estágio de desenvolvimento político e social.”

Rondon seria depois perseguido pela República que ajudou a fundar. Ele foi preso por Getúlio Vargas, que acabara de assumir o poder, em 1930. Amargou quatro anos de ostracismo e viu grande parte de seu pioneiro trabalho de proteção aos índios ostensivamente desmontada. A nova biografia examina a relação complicada entre os dois personagens. “Isso foi pouco destacado, talvez por ser incômodo”, diz Rohter. “Rondon e Getúlio fizeram alianças quando tinham interesses específicos, mas sempre com desconfiança mútua.” Rohter lembra que Rondon foi figura crucial no esforço para evitar que o Brasil varguista se juntasse ao Eixo (Alemanha, Itália e Japão) e entrasse na II Guerra com os Aliados. “Rondon merecia o Nobel da Paz”, diz Rohter, “não só por sua postura durante a II Guerra, como por ter negociado, anos antes, a paz entre a Colômbia e o Peru no conflito na Fronteira Tríplice.” Os 28 anos de vida civil de Rondon depois de ser expelido do Exército, em 1930, geralmente ofuscados por sua vida de exploração extraordinária e mapeamento do nosso território, são objeto de carinhoso exame pelo autor.

AMIGO AMERICANO - Roosevelt (à esq.) foi o primeiro parceiro (American Museum of Natural History/.)

Em 1964, os militares chegaram ao poder exaltando seletivamente as qualidades de Rondon, em revisão genuinamente “presentista”: “Brasil Grande”, mas desmatamento descontrolado e índios expulsos de suas terras por pecuaristas. Nos anos 1990, um reexame feito por antropólogos inspirados por disciplinas da moda, como semiótica e pós-modernismo, desancou Rondon como o “novo bandeirante” que levou morte e destruição para a mata. Rohter não nega fatos enumerados pelos críticos, mas faz ressalvas. “Com a criação do SPI, em 1910, Rondon provavelmente evitou um genocídio”, ele acredita. “Seus adversários queriam apenas matar e erradicar. Ele fazia lobby na capital para proteger povos que nem tinham o conceito do Estado brasileiro. Atuava tanto no mato como nos cafés.”

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A intenção de Rohter, tudo somado, é trazer Rondon para os critérios das biografias modernas, do século XXI. É impossível mergulhar na prosa elegante do livro sem considerar a relevância atual de Rondon, sobretudo em relação ao Brasil de Jair Bolsonaro, profundamente nacionalista, rígido defensor da disciplina militar e simultaneamente avesso ao ambientalismo, à proteção de terras indígenas. Na última entrevista de Rondon, em 1957, diante da tentativa de militares de impedir a posse de Juscelino Kubitschek, Rondon disse que o “Exército deveria ser o grande mudo”, pronto ao sacrifício, “sem interferir em mesquinhas questões de politicagem”.

Enquanto pesquisava sobre Rondon com uma bolsa recebida do Centro Cullman, na Biblioteca Pública de Nova York, Rohter manteve na parede uma foto de Rondon segurando a mão de um indígena pareci de 11 anos, a imagem que abre este texto. Para Rohter, Rondon enxergava no menino quem ele fora. E o menino veria em Rondon quem ele, o pequeno, poderia vir a ser. É o encontro civilizado de dois Brasis, postura que bem poderia servir de espelho aos polarizados dias de hoje.

Publicado em VEJA de de maio de 2019, edição nº 2632

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