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No Brasil, a cultura da matança persiste, com apoio da sociedade

Câmeras flagram policiais das duas maiores cidades brasileiras que executaram suspeitos rendidos. A regra nesses casos é a impunidade – e muita gente está de acordo com desmandos desse tipo

Por Leslie Leitão e Pieter Zalis
Atualizado em 10 dez 2018, 10h21 - Publicado em 2 out 2015, 22h57

Um rapaz recebe um tiro no peito e cai. Uma poça de sangue rapidamente se espalha em torno do seu corpo, já sem vida. A presença de três policiais na cena faz supor que estão atrás do autor do disparo. Não: a bala que matou o rapaz saiu do fuzil de um deles. Com a precisão de uma ação ensaiada, o trio de farda pega a pistola do morto e posiciona-a em sua mão inerte. Um dos policiais aperta duas vezes o gatilho. A história, ocorrida na terça-­feira em uma favela no Centro do Rio de Janeiro, estaria destinada a engrossar o silencioso rol de atrocidades esquecidas pela lei não fosse por um detalhe: uma moradora do Morro da Providência registrou e narrou toda a cena em um vídeo gravado no celular. No filme, ela diz que Eduardo Felipe Santos, de 17 anos, integrante do tráfico local, foi abordado pela polícia e se rendeu, mas mesmo assim foi executado. Em São Paulo, no dia 11 de setembro, cinco policiais foram presos depois de flagrados em um vídeo de roteiro assustadoramente semelhante: eles cercam, rendem, revistam e algemam o suspeito de um assalto, para, em seguida, desalgemá-lo e matá-lo a tiros. Depois, põem uma arma em sua mão e disparam. Nos dois episódios, PMs tentam forjar confrontos com os marginais para esconder o que não passou de crime de execução sumária.

Os PMs estão presos e devem ser punidos com rigor, como costuma acontecer sempre que as provas são gritantes. Ocorre que apenas raramente os investigadores dispõem de elementos tão contundentes quanto imagens de vídeos captadas por testemunhas corajosas ou por câmeras instaladas em ruas e carros de polícia. Essas situações configuram exceção. A regra é a impunidade. De 510 acusações do gênero registradas contra PMs do Rio entre 2001 e 2011, apenas três viraram ações penais, apontam dados do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Parte da falta de interesse em investigar execuções de bandidos cometidas por agentes da lei deve-se ao apoio que grande parcela da população confere à prática. Na semana passada, diante da notícia sobre a cena de crime forjada no Rio de Janeiro, constatou-se que seis em cada dez comentários postados por leitores em uma rede social eram de aprovação à conduta dos policiais. “PM que mata vagabundo deveria ser condecorado”, dizia um deles. “E daí que a cena foi forjada?”, opinava outro. “Tenho certeza de que o cidadão morto não estava ajoelhado rezando.” Apenas 28% dos que comentaram a notícia condenaram o crime.

O apoio massivo das pessoas aos desmandos policiais não surpreende especialistas. Diz o psicanalista Contardo Calligaris: “Numa cidade como o Rio de Janeiro, é muito forte a impressão de viver em uma guerra, em que os policiais representam os bons e os bandidos, os maus. Como quase todo mundo já foi vítima da violência ou ouviu relato de pessoa próxima que viveu episódio assim, é fácil iden­tificar-­se com a situação de perigo por que o policial passa no combate aos bandidos e mesmo apoiar uma reação brutal”.

A cultura da matança está entranhada na polícia brasileira. O Rio de Janeiro é o estado em que mais se mata. Com traficantes munidos de portentoso arsenal bélico, os PMs saem às ruas preparados para ver sangue correr. O confronto já foi até oficialmente incentivado pelo Estado, durante o governo Marcello Alencar, nos anos 90. Havia então a “gratificação faroeste”, um bônus incorporado ao salário do policial que capturasse ou matasse bandidos.

Na semana passada, a juíza Daniela Assumpção, da Vara de Execuções Penais do Rio, saiu de uma visita ao Batalhão Especial Prisional – onde há 221 policiais detidos – sem os óculos, um dos sapatos e com a blusa rasgada. Alguns detentos – muitos presos por integrarem milícias – usaram a força para impedi-la de entrar numa das alas do presídio, como represália pela supressão de regalias.

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Contra o uso da brutalidade como método policial, alguns instrumentos têm se mostrado eficientes. Cientistas do Instituto de Criminologia da Universidade de Cambridge que acompanharam por doze meses um grupo de policiais na cidade de Rialto, Califórnia, constataram que o uso de câmeras presas ao corpo dos policiais, por exemplo, reduziu em 50% os casos de violência por parte da tropa. As reclamações da população sobre a corporação tiveram uma queda ainda maior: 90% em relação ao ano anterior.

Nos Estados Unidos, vigora um protocolo para confrontos com bandidos esmiuçado em catorze passos: primeiro, o aviso é dado em determinado tom de voz, vai subindo, vira ameaça e segue engrossando até resultar em um tiro, o último recurso. Já no Rio, não há protocolo formal. A academia informa que “a força utilizada deve ser proporcional à ameaça”. A superação da cultura da matança exige maior rigor e clareza nas regras de conduta dos policiais, maior vigilância sobre as suas ações e um esforço coletivo para reduzir a impunidade dos culpados. Sem isso, a sociedade já terá perdido a guerra contra o crime.

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