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No abrigo improvisado impera a lei do mais forte

Revolta e medo dominam a atmosfera numa escola em União dos Palmares

Por Fernando Mello, de União dos Palmares
24 jun 2010, 16h05

A única luz do local era gerada pelos faróis acesos de um caminhão, que iluminavam apenas a entrada.

Quando as circunstâncias reúnem sob o mesmo teto estranho e sem conforto centenas de pessoas que têm, no mínimo, apenas a roupa do corpo e, no máximo, documentos e objetos pessoais como brincos e saias, a atmosfera que emerge desse encontro é uma mistura – inconstante – de desilusão, revolta, apatia, raiva e medo.

Maria Madalena, Jéssica e Zuleide: personagens de uma tragédia
Maria Madalena, Jéssica e Zuleide: personagens de uma tragédia (VEJA)

Essa mistura incômoda estava no ar na última terça-feira, quando centenas de famílias atingidas pelas chuvas em Alagoas foram deslocadas para a escola estadual Carlos Gomes, em União dos Palmares. Situada no alto de um morro, a escola tem largos portões de ferro, que se abrem para um caminho de pedra até que se chega a uma estreita entrada que leva a 18 salas de aulas, ocupadas por 287 pessoas, de 49 famílias diferentes. Uma chuva fina caía e o céu nublado deixava a noite mais escura. A única luz do local era gerada por um caminhão, que iluminava a entrada da escola. Cedido por um comerciante local, dono de uma revendedora de telefones celulares que levou como voluntárias quatro funcionárias com camisetas da bandeira da marca que representa, o veículo permaneceu como luz por quase uma hora. Momento em que a porta da escola se tornou um ponto de distribuição de roupas e sanduíches. Um grupo de cinco jovens se reuniu por ali, comandado por um adolescente apelidado de Bolinha. Os goles da cachaça destravaram qualquer inibição. Um senhor que escolheu um paletó foi chamado de pastor de igreja, enquanto Maria Madalena da Silva, 31 anos, procurava sem grande entusiasmo roupas para os dois filhos, Vitória (3 anos) e Alex (9).Grávida de sete meses, também queria algo para o próximo bebê, que ainda não tem nome. Maria Madalena saiu de casa no dia em que as chuvas castigaram sua cidade para fazer exame pré-natal. Como o marido a deixou faz três meses, resolveu levar os dois filhos. Não viu mais sua casa. Em meio a pedidos de fraldas, ela afirma que quase deixou o filho mais velho em casa, “porque ele sabe se virar”. O tom de voz melancólico só mudou quando resolveu aconselhar uma adolescente a sair dali, por conta dos gracejos de Bolinha e sua turma. Outra mãe emerge da escuridão da escola para a luz do caminhão e reclama com os voluntários da loja de telefones porque conseguiu apenas dois sanduíches para sete pessoas da família. Acusa ainda os mais jovens de pegar muito mais do que o necessário. Os voluntários escutam, dizem que todos precisam cooperar, mas é hora de partir. As quatro funcionárias sobem na boléia do caminhão, que vai embora levando junto a única luz do local. Agora, o grupo de Bolinha fala mais alto. Na manhã seguinte, Maria Madalena reclamará da dor nas costas por dormir no chão, da falta de colchões, pegos por um grupo de apenas duas salas de aula transformadas em quartos. “Valeu a lei do mais forte”, explica. Para quem ficou apenas algumas horas na escuridão da escola Carlos Gomes, a sensação é de que ela tem razão. A partir do momento em que o caminhão foi embora, uma espécie de estado de natureza se instalou. Naquela noite, houve casos em que o homem foi lobo do homem, como asseverou Thomas Hobbes. O grupo de jovens resolveu escolher e “trocar” algumas roupas com quem havia selecionado peças na distribuição organizada minutos antes pelos voluntários. Não quiseram o paletó de pastor. Na manhã seguinte, coube a Jéssica Laize Silva, estudante de 18 anos da escola, tentar organizar a convivência. Não sem antes tomar um susto. Com a chave da sala da diretoria, local em que estavam armazenadas roupas e comida, resolveu abrir a porta para entregar um casaco a um dos moradores provisiórios do local. Não conseguiu conter uma invasão, que acabou, mais uma vez, com o cada um por si em busca de roupas. Jéssica resolveu levantar todas as pessoas alojadas na escola, catalogá-las por família e por idade. até o fim do dia, queria dividir as 18 salas segundo esses critérios. Ginásio com luz – A luz esteve presente em outro local destinado a desabrigados de União dos Palmares, o ginásio municipal. Ali, a família de Cristina Felix da Silva (seu marido, quatro filhos, mãe e irmã) se reúnem em dois sofás para assistir a um filme de suspense. O aparelho de DVD teve seu visor queimado pela água, mas ainda funciona. O filme foi descoberto pelo marido de Cristina, Josué, em uma das ruas alagadas. Chama-se Dia dos Mortos. “Não quero nem ver. É filme de dar medo”, diz, cobrindo os olhos com as mãos, Daniel, um dos filhos do casal. Os cantos e as arquibancadas do ginásio são ocupados por famílias que perderam suas casas e, em alguns casos, familiares. Grávida de seis meses, Maria Zuleide, 42, prepara na lateral esquerda da quadra quatro miojos no fogão que conseguiu salvar depois que a água baixou. Seu marido, Luis Apolinário, 67, está deixado na cama que fica próxima ao círculo central da marcação de futebol de salão. “Ele é muito doente, quase não conseguiu sair de casa”, diz Zuleide. Seus dois filhos, tentavam dormir no chão. A mais velha reclamou do barulho das pessoas e da luz na cara.

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