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Brasileiro deportado dos EUA pede para ser declarado ‘sem pátria’

Paul Fernando Schreiner, 36, foi adotado por americanos aos 5 anos e levado ao Nebraska; devolvido ao Brasil, não fala português e vive em um limbo jurídico

Por Fernanda Bassette
Atualizado em 25 mar 2021, 21h54 - Publicado em 10 jun 2019, 19h08

Aos 36, Paul Fernando Schreiner vive há um ano em Niterói (RJ) em um limbo administrativo incapaz de afirmar a sua nacionalidade. Nascido no Brasil na década de 1980, ele foi adotado por um casal de americanos aos 5 anos de idade e levado para Nebraska (EUA). Por mais de três décadas morou nos Estados Unidos sem se naturalizar cidadão americano. Apesar de viver legalmente no país, acabou deportado em 12 de junho passado, sem se despedir da família, com a roupa que vestia e sem nenhum dinheiro no bolso. Aqui, foi acolhido por pastores missionários e hoje vive na casa de um deles, Segisfredo Wanderley, que luta para garantir uma identidade ao rapaz.

Apesar de ter nascido no Brasil, Paul não quer ser reconhecido como cidadão brasileiro e nem aprendeu a falar português. “Não gosto daqui de jeito nenhum”, afirma. Em agosto do ano passado, ele deu entrada em um pedido de reconhecimento de apátrida – cidadão sem pátria definida –, mas até agora não obteve resposta do Ministério da Justiça, órgão responsável por avaliar esse tipo de reivindicação.

Enquanto isso, Paul vive uma vida sem rumo e sem sentido. Passa o dia na academia ou no shopping “onde o wi-fi funciona melhor”, tem poucos amigos e não pode arrumar emprego justamente por não ter nacionalidade definida. Seus pais americanos enviam dinheiro mensalmente para que ele se mantenha.

A adoção

O sentimento de desgosto que ele tem pelo Brasil é explicado por sua conturbada história de vida. Paul não sabe o dia nem a cidade em que nasceu, não sabe o nome dos pais biológicos e nem da irmã que afirma ter. A única coisa que ele sabe é que nasceu no Brasil, provavelmente no estado do Rio de Janeiro (no documento que ele possui consta Nova Iguaçu), e que foi adotado e levado de um suposto orfanato por um casal de americanos, Roger e Rosanna Schreiner.

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Paul diz ter poucas lembranças da sua infância brasileira. A história que contaram aos seus pais é que ele foi criado nas ruas e acolhido por um orfanato, mas ele afirma não se lembrar disso – apesar de ter memórias de já ter comido restos de comida. Diz que sua mãe era uma pessoa muito boa e que sua irmã foi levada “por homens maus”. “Eu não tinha o perfil de uma criança de rua, eu era uma criança saudável. Nem acho que nasci na favela”.

Documento de saída de Paul Schreiner do Brasil, apenas com o nome Fernando e com data de nascimento que os pais adotivos escolheram<span class="hidden">-</span>
Documento de saída de Paul Schreiner do Brasil, apenas com o nome Fernando e com data de nascimento que os pais adotivos escolheram (Reprodução/Reprodução)

Seus pais adotivos saíram do Brasil com Paul e um único documento que dizia apenas que seu nome era Fernando e que ele havia nascido no dia 15 de janeiro de 1983 – data escolhida pelo casal Roger e Rosanna. Mais nada. “Que orfanato entregaria uma criança para adoção estrangeira sem certidão de nascimento e nenhum outro tipo de documento de registro dessa criança?”, pergunta Paul. Ele questiona a legalidade da adoção, dizendo que seus pais tiveram de pagar 10 mil dólares no processo. “Desde quando as adoções são cobradas? Claramente minha saída do Brasil aconteceu de forma ilegal”, afirma. “Era comum esse tipo de coisa nos anos 1980”, diz.

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A vida na América

Paul afirma ter vivido uma infância maravilhosa nos Estados Unidos ao lado dos pais adotivos e dos seus irmãos também adotados. Afirma ter estudado e ter conquistado seu espaço no país. Diz ter quatro filhas e que atuava como treinador de futebol americano para crianças, além de trabalhar com limpeza de piscinas. Se considera um homem bem-sucedido. Paul conversa com as filhas e com os pais pelo menos duas vezes por semana.

De acordo com ele, seus pais não deram entrada no seu pedido de naturalização quando o adotaram porque, naquela época, o processo era judicial, demorava muito tempo e custava muito caro. Os pais teriam preferido esperar mais um pouco. Paul tinha a certidão da previdência social e pagava impostos nos EUA, mas poderia ser deportado, caso cometesse algum crime.

Documento de identidade americano de Paul Schreiner com o nome dos pais adotivos Roger e Rosanna
Documento de identidade americano de Paul Schreiner com o nome dos pais adotivos Roger e Rosanna (Reprodução/Reprodução)

Em 2001, o então presidente Bill Clinton aprovou uma lei que tornava automático o reconhecimento da cidadania para estrangeiros adotados por pais americanos. O benefício se estendia para regularizar crianças com até 18 anos – Paul ficou de fora por apenas seis semanas. O problema se agravou quando ele completou 22 anos e se envolveu com uma menina de 14 anos. Apesar de a relação ter sido consensual, a mãe da garota o denunciou e Paul foi condenado a dez anos de prisão por fazer sexo com menor de idade.

Paul cumpriu a pena integralmente e mudou-se para o Arizona, onde continuou a viver sua vida normalmente até ser preso por agentes do governo americano, com a ordem de deportação. Apesar de viver legalmente no país, Paul havia cometido um crime e, portanto, deveria ser deportado. Por duas vezes o pedido foi negado pelas autoridades brasileiras sob a justificativa de que o Brasil não poderia receber de volta alguém adotado.

Documento emitido pelo consulado em Los Angeles atestando que Paul era brasileiro - não há nenhuma informação sobre seus dados nacionais<span class="hidden">-</span>
Documento emitido pelo consulado em Los Angeles atestando que Paul era brasileiro – não há nenhuma informação sobre seus dados nacionais (Reprodução/Reprodução)

Porém, sem explicação, o Consulado Brasileiro de Los Angeles acabou emitindo um atestado afirmando que “Fernando” era de fato um cidadão brasileiro. No documento, com selo oficial do governo, não há nome completo, não há nome dos pais brasileiros, não há cidade de nascimento e nem nacionalidade.

Chegada ao Brasil

Foi com esse papel que Paul foi colocado algemado em um avião saindo de Nova York no dia 12 de junho de 2018, com destino ao Rio de Janeiro, acompanhado de dois agentes americanos. Ao desembarcar, ainda com algemas, Paul afirma que não passou pelos trâmites legais da imigração – ele teria sido levado por um caminho alternativo para uma sala da Polícia Federal. “Me levaram pela direita, sem passar pela alfândega. Descemos umas escadas, passamos por uma loja [DuttyFree] e fomos para uma sala da PF”, conta.

Lá, diz que ficou por bastante tempo esperando os agentes resolverem o que fazer com ele. Até que o levaram para a frente do aeroporto, soltaram suas algemas e viraram as costas. Era o começo de um novo martírio.

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Por sorte, um missionário chamado Robert já o esperava no local. Ele recebeu o pedido de ajuda internacional de um grupo de missionários que souberam da situação de Paul e queriam ajudá-lo de alguma forma. Por três semanas Paul viveu com Robert, até ser acolhido pelo pastor Segisfredo, com quem vive até hoje.

No meio de toda essa confusão, o Itamaraty emitiu uma nova certidão de nascimento brasileira para ele – mas retirou o nome Paul do documento, informou que ele nasceu em Nova Iguaçu e colocou seus pais americanos como pais biológicos. Com esse documento, Paul não conseguiu dar andamento em absolutamente nada: a Receita Federal não emite o CPF dele porque os dados da certidão brasileira não batem com os da certidão americana e, além disso, o documento não diz qual é a nacionalidade do rapaz. Mesmo problema foi enfrentado quando ele tentou tirar um RG. Sem nacionalidade, impossível emitir o documento.

Assim, Paul não consegue tirar o seu passaporte para que possa ir embora do Brasil. Sua expectativa é se mudar para o Canadá, para ficar mais perto dos pais e por falar a mesma língua. “Enquanto o [Donald] Trump for presidente, não há a menor possibilidade de eu me tornar cidadão americano”, afirma. Ele pretende pedir ajuda a grupos ligados aos direitos humanos.

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Ajuda

O pastor Segisfredo, que acolheu Paul, diz que, quando o rapaz chegou, várias pessoas manifestaram solidariedade, mas desapareceram semanas depois. E ele não podia deixá-lo na rua. “Ele não tinha outra alternativa de vida, a não ser viver aqui. Paul não existe formalmente no Brasil porque não entrou formalmente aqui. Ajudar ele é uma questão de humanidade”, afirma.

Segisfredo procurou ajuda na Defensoria Pública da União para formalizar a entrada de Paul no Brasil e pedir ajuda no caso dele, como a nulidade da certidão emitida pelo Consulado Brasileiro em Los Angeles. Ao mesmo tempo, procurou o Ministério da Justiça para pedir o reconhecimento de apátrida. Até agora, o caso pouco avançou.

“Paul não quer ser brasileiro de jeito nenhum. Diz que o Brasil só lhe fez mal. A gente pede que o governo acelere esse pedido de reconhecimento apátrida, pois Paul aqui vive uma violação dos direitos humanos. Aqui está preso e condenado a não ter identidade”, disse Segisfredo.

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Procurados por VEJA, a Polícia Federal do Rio de Janeiro informou que pediu as informações sobre a chegada de Paul Fernando Schreiner para o aeroporto, mas ainda não obteve resposta. O Itamaraty informou que emitiu uma nova certidão de nascimento com os nomes dos pais adotivos porque soube que a primeira havia sido cancelada. Diz que o documento é “plenamente válido”, mas não explicou por que subtraiu o nome “Paul” e por que não informou a nacionalidade do rapaz. O Ministério da Justiça não respondeu sobre o pedido de reconhecimento de apátrida até o fechamento desta reportagem.

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