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Governo do Rio, enfim, encara os mortos invisíveis nas estatísticas

Em audiência pública, secretário de Segurança reconhece falha na comunicação de bancos de dados e defende mais transparência nos índices de homicídios

Por Cecília Ritto Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 5 dez 2011, 17h03

Em números precisos, segundo a pesquisa de Cerqueira, em 2009 foram 3.165 vítimas de assassinatos que entraram para os registros oficiais como algo “indeterminado”

Em vez de um tiroteio de acusações sobre manipulação de dados nas estatísticas de criminalidade do Rio de Janeiro – como se esperava – o que se viu na Audiência Pública realizada na Assembléia Legislativa do Estado do Rio, na manhã desta segunda-feira, foram dois consensos: o primeiro, o de que pode não haver má-fé nas divergências de dados da polícia fluminense com as informações do sistema de Saúde do SUS; o segundo, o de que os dados do Instituto de Segurança Pública do Rio (ISP) não são uma mentira, mas inegavelmente são só parte da verdade. A terceira, e óbvia conclusão, é a de que o pesquisador Daniel Cerqueira, do Ipea, prestou um grande serviço à qualidade dos índices de criminalidade no estado, apontando divergências gritantes entre os dois sistemas.

Durante cerca de quatro horas, o emaranhado de dados numéricos e os caminhos da informação, do registro de ocorrência da Polícia Civil até o DataSUS – o banco de dados do Ministério da Saúde – foi discutido com a presença do secretário de Segurança Pública do Rio, José Mariano Beltrame, o pesquisador Ignácio Cano, da UERJ, o economista Daniel Cerqueira, e autoridades da segurança. Do encontro, saíram algumas propostas, as principais delas no sentido de dar mais transparência aos dados sobre homicídios e eliminar obstáculos à comunicação dos dois bancos de dados envolvidos na discussão – o do Instituto de Segurança Pública do Rio (ISP) e o do Ministério da Saúde.

Resumidamente, o estudo de Cerqueira encontrou o seguinte problema: os dados usados para balizar políticas públicas e para comparar o desempenho dos estados no combate aos crimes contra a vida são os do Ministério da Saúde – o DataSUS. E para classificar um óbito como homicídio ou “morte de causa indeterminada” são usados dados dos governos estaduais, através de seus departamentos de polícia civil e medicina legal. No Rio, vinha ocorrendo, desde 2007, um acentuado declínio dos dados de homicídios, acompanhado de um crescimento desproporcional de mortes violentas de causa indeterminada. Em números precisos, segundo a pesquisa de Cerqueira, em 2009 foram 3.165 vítimas de assassinatos que entraram para os registros oficiais como algo “indeterminado”.

Um grave problema: o ISP, que sempre divulga as reduções na criminalidade, não trabalha com o que não está classificado. Assim, as tais mortes violentas “de causas indeterminadas” só apareciam nos dados da Saúde – e nem sempre nos dados do instituto.

O atraso na comunicação dos dados se deu, como foi mostrado na audiência pública, na reclassificação dos dados pelo Ministério da Saúde. A partir de 2007, as mortes inicialmente classificadas como de causa indeterminada, mas que posteriormente a investigação policial incluía no campo dos homicídios, não entravam para os dados da Saúde dessa forma. Ou seja: avolumava-se a pilha de óbitos de causa desconhecida, enquanto reduzia-se a dos assassinatos.

Intencionalmente ou não, o resultado disso foi, para a opinião pública, uma propaganda ilusória de uma redução nos índices de criminalidade do Rio. O estudo de Cerqueira mostrou que, em vez de reduzir em 28,6% os crimes contra a vida, o estado conseguiu uma diminuição de apenas 3,6% – com base nos dados da Saúde.

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Esses óbitos se tornaram ‘invisíveis’ para o público por causa do caminho que percorreram a partir do Instituto Médico Legal (IML) do Rio. É o IML o órgão para o qual são encaminhados todos os casos de mortes violentas – ou mortes de causa não natural. E, a partir do trabalho dos legistas, classificam-se as mortes como homicídios ou mortes de causas não esclarecidas. Pelo menos é assim que deveria funcionar. Em vez disso, o que vinha ocorrendo é que grande parte dos homicídios, por desencontro da informação, ficavam no campo dos “não esclarecidos” – e aqui muitas vezes havia casos de corpos com ferimentos a bala.

“O indicativo é de que estávamos lidando com um erro, não como uma fraude. Os dados de homicídios procedem da Saúde, não do ISP. Acontece que, depois de 2007, quadriplicou o quaro de mortes indeterminadas”, afirmou Ignácio Cano, tirando a discussão do campo da “má-fé” – o que gerou até ameaças de processo movidas pelo secretário Beltrame contra o pesquisador Cerqueira, do Ipea.

“No momento que recebi a notícia de que ele estava pensando em me processar, fiquei bastante perplexo. Pesquisas são algo normal e salutar para a democracia. Não podemos ter apenas pesquisas que falem a favor do governo. Vai falar bem, mal e do que for necessário”, disse Cerqueira, que elogiou a política de segurança e o próprio Beltrame.

Beltrame admitiu que há um problema crônico na falta de comunicação entre os bancos de dados. “Esses bancos têm que se falar. Tem que se fazer a transição de uma para outra. As diferenças são grandes porque precisa-se das circunstâncias das mortes desconhecidas, e o ISP tem isso”, disse Beltrame, sobre o atraso dos dados.

Soluções – Da audiência pública surgiram quatro medidas que, se saírem do papel, podem tornar mais transparentes as estatísticas de homicídio do Rio. A primeira delas é a revisão de uma lei estadual do governo Cabral. Desde do 2007, lembrou Cano, uma lei estadual impede acesso aos bancos de dados do ISP a servidores de fora da Polícia Civil. A Lei 5061, que deverá ser revista, impossibilita, por exemplo, que um funcionário do IML ou do ISP atualize as causas de morte de uma vítima. Atualmente, nem o presidente do ISP, o policial militar Paulo Augusto Souza Teixeira tem acesso aos bancos de dados. A isso soma-se uma tradição. Diz Ignácio Cano: “O Rio tem uma resistência histórica dos peritos na hora de escrever nos laudos a causa da morte”.

Cano propôs uma providência que envolve pesquisadores – como ele próprio e Cerqueira – no detalhamento das estatísticas de crimes. Segundo ele, o Rio deve ter um observatório de homicídios, para fornecer aos gestores da área de segurança informações mais precisas, envolvendo a população nos debates.

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Em 2012, deve ser realizada nova audiência pública, para discutir os procedimentos da perícia no que diz respeito à classificação dos homicídios – o ponto central da divergência de dados entre o ISP e os números do Ministério da Saúde.

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