No início do mês passado, a polícia de Tocantins apreendeu catorze armas em Araguaína, no norte do estado, incluindo pistolas de grosso calibre, espingardas e centenas de munições. E o mais importante: desarticulou um esquema de desvio de material comprado legalmente com registro de caçadores, atiradores e colecionadores, os chamados CACs. Segundo a investigação, os envolvidos registravam boletins de ocorrência para simular o roubo dos armamentos, que eram vendidos no mercado ilegal. Catorze pessoas foram presas, incluindo um sargento da PM que, nas redes sociais, apresentava-se como diretor de dezoito clubes de tiro e pré-candidato a vereador pelo PP. O episódio ilustra os gargalos da política pública para a questão e a crescente ameaça representada pela livre circulação de armas no país, facilitada pela flexibilização promovida por Jair Bolsonaro e que segue desafiando o poder público, apesar da promessa da gestão Lula de retomar o controle sobre a situação.
O desvio de armas obtidas legalmente é cada vez maior. Dados obtidos por VEJA com o Exército mostram que no primeiro trimestre deste ano 655 armas em poder de CACs foram registradas como furtadas, roubadas ou perdidas, a maior média desde 2018 (veja o quadro). Essa categoria foi a principal beneficiada pelos decretos de Bolsonaro que permitiram a compra de armas de uso restrito por cidadãos comuns. “Tem a pessoa bem-intencionada que compra uma pistola para praticar o esporte e, de fato, tem sua casa roubada. Mas há também casos recorrentes de laranjas do crime organizado ou gente que compra a arma com a intenção de vender para o mercado ilegal”, alerta a pesquisadora Natália Pollachi, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz.
Outros números reforçam o tamanho do problema. Um relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) mostrou que mais de 5 200 condenados por crimes conseguiram o registro de CAC no governo Bolsonaro. Para piorar, o Exército, responsável pelo controle, fiscalizou apenas 3% dos CACs do país em 2023 — não à toa, a tarefa será da PF a partir de 2025, por decisão do governo Lula. E, para fechar, o poder público não sabe a real situação de 6 156 armas de uso restrito que deveriam ter sido recadastradas na PF em 2023. Na época, o então ministro da Justiça, Flávio Dino, chegou a dizer que quem não fizesse o registro estaria cometendo crime e teria o equipamento sujeito à apreensão. Mas não foi isso que aconteceu. O Exército diz que o decreto não fixa consequências a quem não cumpriu a obrigação e alega não ter recebido informação sobre o resultado do recadastramento. Já a PF diz que os dados foram “amplamente divulgados” e lembrou que a competência sobre a fiscalização é dos militares até 1º de janeiro de 2025.
A transição não será simples. A PF diz não ter estrutura suficiente e espera contratar 222 delegados, 195 psicólogos, 585 policiais, 1 570 agentes administrativos e 780 terceirizados para atender à demanda. “Embora tenhamos iniciado essas tratativas em agosto de 2023, não temos autorização para a realização de concurso e ainda não temos o aporte do recurso financeiro. É um sinal de alerta que precisa ser observado pelos órgãos competentes”, diz o delegado Cristiano Campidelli, coordenador-geral de Controle de Serviços e Produtos da PF. Há, ainda, outras pontas soltas deixadas pela gestão Dino. “Até agora não foi apresentado um programa de recompra de armas, como prometido”, exemplifica Roberto Uchôa, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
No âmbito estadual, a falta de integração entre as polícias e entre os bancos de dados é apontada como um desafio. Há apenas duas delegacias especializadas — no Rio e no Espírito Santo. “Falta uma rede nacional que busque o combate ao tráfico de armas e munições”, afirma o delegado Daniel Belchior, da Delegacia Especializada em Armas, Munições e Explosivos do Espírito Santo. Enquanto isso não acontece, o país empilha marcas negativas: só no ano passado, foram apreendidos 1 340 fuzis — símbolos do poderio das facções criminosas —, maior número desde 2017.
O governo Lula acertou ao apertar o freio na caótica liberação feita por Bolsonaro. As ideias lançadas, no entanto, não prosperaram e a eficácia da política foi como um tiro no escuro. A barafunda na fiscalização só aumentou, assim como o desvio de armas para criminosos. Além disso, os defensores do armamento da população não baixaram suas armas. A “bancada da bala” pressiona pela revisão de restrições, e o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, já assentiu que parte das regras pode ser rediscutida. As idas e vindas do governo, porém, podem agravar um quadro perigoso para a sociedade. É urgente que o poder público retome o controle sobre uma questão tão sensível.
Publicado em VEJA de 3 de maio de 2024, edição nº 2891