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Depois de 110 mortos e 250 desaparecidos, a Vale diz que vai mudar

Mineradora anuncia a desativação de barragens como as que causaram os desastres de Mariana e Brumadinho, mas danos humanos e ambientais já são irreparáveis

Por Eduardo Gonçalves, de Belo Horizonte, Guilherme Venaglia e Emiliano Capozoli (fotos), de Brumadinho, e Roberta Paduan
Atualizado em 1 fev 2019, 17h04 - Publicado em 1 fev 2019, 07h00

Quatro minutos. Não mais que isso foi o tempo que a lama grossa composta de restos de minério de ferro, argila e sílica, expelida com o transbordo da barragem do Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG), levou para percorrer os 1 600 metros que separavam o epicentro do rompimento do prédio onde 292 funcionários e terceirizados da Vale estavam na tarde da sexta-feira 25. E de onde, tragicamente, não saíram. O mesmo intervalo de tempo que trouxe a catástrofe poderia ter salvo a vida dessas e de outras dezenas de pessoas que estavam no caminho do lodaçal se a sirene de segurança instalada no local tivesse sido acionada no momento do rompimento pelo responsável por situações de perigo, como previa o Plano de Ação de Emergência da Barragem. Os funcionários teriam então quatro minutos para correr para um local seguro e avisar as autoridades para a evacuação. O alarme não soou. Relatos de quem sobreviveu dão a dimensão da tragédia: um grande estrondo seguido de uma onda de lama.

LAMA ENVENENADA - Na devastação marrom, suja, o único ponto de destaque é o uniforme dos bombeiros que vasculham o atoleiro atrás das vítimas. Em minutos, a paisagem que as chuvas de verão tornaram mais verde perdeu a cor e a vegetação. O mar pegajoso de rejeitos tóxicos avança por terra e água, compondo um desastre ecológico ainda incalculável. A língua de líquido poluído é capaz de seguir espalhando seu veneno por 300 quilômetros, pelas águas distantes do Rio Paraíba do Sul, no Sudeste, e do São Francisco, no Nordeste. (Antonio Lacerda/EFE)

O saldo da desgraça até o fechamento desta edição chega a 110 mortos e o número de desaparecidos caíra para menos de 250. Nesse contingente estão moradores, empregados, terceirizados e turistas que visitavam a região — a Pousada Nova Estância, instalada em uma bucólica área rural, foi arrasada, e entre os hóspedes desaparecidos está uma mulher grávida. Com os esforços de resgate já chegando ao sétimo dia, tornam-se escassas as chances de ainda encontrar sobreviventes. A Vale imprime sua assinatura em um dos maiores desastres provocados por uma barragem em toda a história. Desastre que, a depender do curso das investigações, poderá ser formalmente qualificado como crime: três engenheiros da empresa e dois da alemã Tüv Süd, certificadora independente que atestou a estabilidade da barragem quatro meses antes do rompimento, estão em prisão preventiva.

O MAR DE LAMA, DE NOVO – Área coberta pelos rejeitos da barragem: drama humano e ambiental (Douglas Magno/AFP)

Em reparação tardia, a Vale afirmou que acelerará a desativação (“descomissionamento”, no jargão técnico) de Brumadinho e outras nove barragens que a empresa mantém no Brasil — todas em Minas Gerais (veja o mapa abaixo). Estima-se que levará de seis meses a um ano para que as investigações apontem as causas da devastação em Brumadinho. Mas a temeridade dos processos adotados já se revela imediata e óbvia. O alarme que não soou é a mais simples das falhas. Questionada a respeito, a Vale respondeu nos seguintes termos: “Devido à velocidade com que ocorreu o evento, não foi possível acionar as sirenes relativas à Barragem 1”. A empresa não soube dizer qual é a velocidade aceitável de um acidente para que os procedimentos de segurança sejam ativados (leia a Carta ao Leitor). Também inexplicável foi a construção do centro administrativo da empresa no caminho da enxurrada fatal, aos pés da barragem — que, aliás, foi erguida com o processo de risco mais elevado, o “alteamento a montante” (leia o quadro explicativo ao lado). Esse método, mais econômico, prevê que a barreira de contenção receba camadas do rejeito, que se solidificam com o tempo e acabam formando a base para o depósito de uma nova camada — e assim sucessivamente. O modelo foi proibido no Chile depois que, em 1965, um terremoto fez todas as barragens de rejeitos de cobre se romper na mina de El Cobre, matando 300 pessoas. Pesquisadores espanhóis e portugueses publicaram, em 2007, um estudo que listava e analisava as causas de acidentes em barragens de rejeitos no mundo: 76% deles haviam ocorrido em barragens de alteamento a montante. Outra constatação do estudo é que em 40% dos casos de incidente houve a associação de razões naturais (abalos sísmicos, chuva ou derretimento de neve em excesso) com falhas na gestão da barragem. Acidentes em barragens inativas — como era a de Córrego do Feijão — são raros: apenas 10% dos casos compilados no estudo.

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A DOR ANIMAL –  O esforço para salvar o gado atolado no barro: além das perdas humanas, houve nascentes soterradas, vegetação destruída e fauna devastada (Wilton Junior/Estadão Conteúdo)

Há apenas três anos, em Mariana, outra barragem erguida a montante derramou uma avalanche de lama que arrebatou dezenove vidas humanas (duas eram crianças) e provocou uma catástrofe ecológica ao longo do Rio Doce (leia a reportagem). A Samarco, responsável pela barragem, até hoje não arcou com os 350 milhões de reais em multas ambientais aplicadas pelo Ibama. Das 31 multas emitidas pelo governo de Minas, cinco foram anuladas e só uma foi quitada parcialmente; dos 127 milhões de reais autuados e parcelados em sessenta meses, dezoito parcelas foram pagas. A Vale, acionista da Samarco, procurou distanciar-se quanto pôde do escândalo — mas sua imagem pública saiu indelevelmente manchada pela lama. No ano passado, uma campanha publicitária tentou associar a marca à “sustentabilidade”, mas seus slogans soam hipócritas agora, à luz da reincidência no descaso (veja a reportagem sobre o futuro da empresa). Tem-se repetido que a devastação ecológica foi menor em Brumadinho, o que é fato — mas o termo de comparação é elevado: Mariana, afinal, foi o maior desastre ambiental do Brasil. O rompimento da barragem do Córrego do Feijão causou soterramento de nascentes, contaminação das águas do Rio Paraopeba, destruição da vegetação local e morte de animais selvagens e domésticos.

Entre engenheiros e técnicos do setor de mineração, a Vale tem, é verdade, a fama de empresa ciosa de suas responsabilidades regulatórias. Tão logo o acidente eclodiu, a companhia apressou-se em mostrar certificados em dia — e lembrou que a barragem do Córrego do Feijão não constava da lista negra da Agência Nacional de Mineração, que aponta as 45 barragens mais perigosas do país. A empresa acabara de conseguir, em dezembro de 2018, duas licenças fresquinhas do governo de Minas Gerais. Um documento permitia que a Vale descomissionasse a barragem. A Vale também poderia reminerar parte dos rejeitos ali depositados — ou seja, reci­clá-los para venda. A outra licença autorizou a Vale a ampliar a extração de outra mina do Complexo Minerário de Brumadinho. É aí que o verniz da legalidade mostra rachaduras. O processo de licenciamento foi permeado de controvérsias. No processo de ampliação, a empresa obteve três licenças — a prévia, a de operação e a de instalação — de uma só vez, graças a uma norma promulgada pelo governo de Fernando Pimentel (PT-MG), em 2017, que rebaixava o nível de risco de algumas barragens, inclusive a que acaba de espalhar morte e destruição na região de Brumadinho. “Foi como dizer que uma abóbora agora era uma abobrinha”, resumiu a ambientalista Maria Teresa Corujo, conselheira do Fórum Nacional da Sociedade Civil nos Comitês de Bacias Hidrográficas (Fonasc). Ela foi a única dos oito conselheiros a votar contra o licenciamento na Câmara de Atividades Minerárias, responsável pelas autorizações ambientais em Minas. O projeto previa um aumento gra­dual de 70% na produção de ferro daquela área até 2032. A conselheira, ao deparar com a numeralha, não se conformou em ver a licença sair sem que fossem feitos mais estudos de impacto. “O que existe, na verdade, é uma fábrica de montagem de licenciamento. Tudo o que as mineradoras pedem passa de maneira atropelada”, diz Maria Teresa.

A DEVASTAÇÃO DO REJEITO –  Interior de casa tomada pela lama em Brumadinho: repetição da tragédia de Mariana (Pedro Vilela/Getty Images)

A concessão a toque de caixa de licenças se tornou uma prática comum na gestão do secretário de Meio Ambiente, Germano Luiz Vieira, que assumiu a pasta em novembro de 2017. Vieira tem um irmão que trabalha na mineradora Anglo American e foi o único secretário do governo petista que permaneceu na administração de Romeu Zema, do Novo. “Se a pessoa não é mantida porque representa o partido, é porque ela representa o setor”, acusa o deputado João Vítor Xavier (PSDB-MG), autor de um projeto que previa regras mais rígidas para a construção de barragens — e que nunca saiu do papel. Depois de ser rejeitado pela Assembleia Legislativa por “inviabilizar”, nas palavras de deputados próximos de mineradoras, a atividade de empresas como a Vale, o texto do projeto foi atenuado por Xavier. Mesmo assim, em setembro de 2018, foi rejeitado na Comissão de Minas e Energia, por 3 votos a 1 — dois dos três deputados que votaram contra haviam recebido doações de empresas de mineração em 2014 e 2010. “O lobby é forte. A assessoria técnica da Vale visita os gabinetes constantemente”, diz Xavier. A força dos interesses do setor é tão grande que, apesar da comoção gerada por Mariana, a Assembleia barrou a instauração de CPI para investigar a segurança nas barragens.

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Há contradições e incoerências entre as políticas de segurança propaladas pelas mineradoras (a Vale é a 12ª mais segura do mundo, num ranking de trinta) e os acidentes recentes, como em Brumadinho e Mariana. A Vale proíbe, por exemplo, que seus funcionários se aproximem de um talude (parede de pedra) com mais de 1 metro e meio de altura, por considerar que há risco de desprendimento de um fragmento de rocha, mas ergueu seu centro administrativo ao lado de uma barragem. O chefe do Ibama de Minas Gerais, Julio Grillo, diz que uma das explicações é a deficiência dos estudos de segurança de barragens feitos no país. “Eles atestam que as estruturas são estáveis. A maioria de fato é, mas porque os laudos não levam em conta condições naturais como chuvas, sismos e até infiltração por formigas”, diz. Em Mariana, houve o registro de quatro tremores de terra. No caso de Brumadinho, não. A promotora Andressa Lanchotti, coordenadora da comissão de Meio Ambiente do Ministério Público de Minas Gerais, critica o fato de os laudos serem produzidos por empresas contratadas pelas próprias mineradoras (foi assim na barragem de Feijão): “Enquanto houver autorregulamentação, não dá para acreditar no sistema”. A fiscalização do governo federal é notoriamente mal equipada: há apenas 35 técnicos capacitados na Agência Nacional de Mineração para fiscalizar as 790 barragens de rejeito que existem no país. “Passados três anos de Mariana, a conclusão é que o Brasil aprendeu pouco em termos de protocolos de risco”, afirma Rodrigo Jorge Moraes, professor de direito ambiental da PUC de São Paulo.

Os dezenove mortos de Mariana não mobilizaram empresas e autoridades para tomar providências substantivas. Na se­quên­cia da tragédia em Brumadinho, parece que haverá mudanças. A CSN, que controla a barragem de Casa da Pedra, a menos de 250 metros da cidade de Congonhas, anunciou, enfim, sua desativação. A barragem tem capacidade para 50 milhões de metros cúbicos — a de Brumadinho aguentava 12,7 milhões. Especialistas calculam que, se ela desmoronasse, as vítimas chegariam à casa dos milhares. A cidade tem 55 000 habitantes e é famosa por abrigar os doze profetas esculpidos por Aleijadinho. O Ministério Público já autuou a barragem por danos em sua estrutura, como infiltrações e rachaduras. Em 2017, elaborou um parecer no qual apontava o risco de desmoronamento. Na  quarta-feira 30, a Justiça do Estado de Minas Gerais proibiu a licitação de barragens de alteamento a montante — uma ação nesse sentido tinha sido movida pelo Ministério Público há dois anos, mas só agora, centenas de vidas soterradas depois, foi julgada. A sirene, tardiamente, está soando.

Com reportagem de André Lopes e Fernanda Bassette

Publicado em VEJA de 6 de fevereiro de 2019, edição nº 2620

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