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Casais de mulheres buscam na Justiça dupla licença-maternidade

Mulheres de Campinas obtiveram liminar favorável; lei não prevê nenhum benefício à companheira de quem gerou a criança

Por Flávia Mantovani
Atualizado em 10 abr 2018, 19h53 - Publicado em 10 abr 2018, 18h26

Quando as gêmeas Rebeca e Beatriz nasceram, há dois meses, foram direto para o peito das mães – isso mesmo, no plural. Elas são filhas do casal de mulheres Ana Paula e Rafaela Felipe Bahe, duas instrutoras de autoescola de 33 anos que recorreram à inseminação artificial para realizar o sonho da maternidade. Rafaela gerou os bebês e Ana Paula fez tratamento para conseguir amamentar junto com a companheira.

Agora, elas continuam se revezando no aleitamento e no dia a dia com as filhas no apartamento onde moram, em Campinas. O cuidado conjunto tem sido possível graças a uma liminar que concedeu a Ana Paula um benefício ainda raro no Brasil: o direito de uma mulher tirar licença-maternidade mesmo sem ter dado à luz.

No pedido, a juíza leva em conta o fato de que Ana Paula também é mãe dos bebês, como prova a filiação na certidão de nascimento, e os amamenta. O INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) entrou com recurso, a liminar encontra-se suspensa e agora as advogadas do casal recorreram dessa suspensão. O julgamento de fato ainda não foi marcado.

“A gente combinou que se fossem dois bebês, eu iria ajudá-la”, diz Ana Paula, que procurou uma enfermeira especialista em amamentação para fazer o tratamento. Quando a companheira estava com cinco meses de gravidez, ela passou a usar anticoncepcional e um medicamento para o estômago que tem como efeito colateral aumentar o nível de prolactina, hormônio responsável pela produção do leite materno.

“Foi uma espécie de gravidez induzida. Quando começaram a sair as gotinhas, fiquei toda feliz”, lembra Ana Paula, enquanto dá entrevista na sala de casa, em frente a um enfeite de bolo com duas bonecas vestidas de noiva, lembrança do casamento civil delas.

Ana Paula e Rafaela Felipe (//Arquivo pessoal)

Rafaela e Ana Paula estão juntas há nove anos. A decisão sobre quem engravidaria foi fácil: apenas Rafaela tinha essa vontade. “Nós duas queríamos ser mães, mas eu não tinha o sonho de gerar”, diz Ana Paula, que buscou um doador de sêmen com características físicas parecidas com as suas.

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“O nariz da Bia é meu, o da Rebeca é da Rafa, mais chapadinho. Escolhemos um doador com cabelo castanho claro, olhos castanhos esverdeados, porque o meu olho é de um castanho mais claro e o da Rafa, mais escuro, então juntando os dois ficaria parecido com o meu”, explica. “Só a altura que quis diferente, 1,80 metro [ela tem 1,54 metro]. Sofri bullying por causa disso, minhas filhas vão sofrer também?”, diz, rindo.

A chance de terem gêmeos era de 5%. Rafaela levou um susto quando recebeu a notícia de que eram dois bebês. “Mas hoje dou graças a Deus. Essas duas são minha vida. É um amor tão grande que chega a dar medo, só sendo mãe para entender.”

A dedicação que os bebês exigem também é grande. “Fiquei em pânico pelo fato de a Paulinha ter que voltar a trabalhar. Minha mãe não mora em Campinas, minha sogra cuida da mãe, que está doente. Como eu faria sozinha com as duas bebês? Às vezes berram juntas, como eu ia dar conta de amamentá-las?”, questiona.

O casal trabalha na mesma autoescola. Quando elas decidiram ter filhos, avisaram os patrões e tiveram o apoio deles, inclusive quando anunciaram que tentariam a licença-maternidade dupla. “No começo, eles me deram férias até sair a liminar”, diz Ana Paula. Agora, elas aguardam a decisão do juiz sobre o recurso e o julgamento do caso, que ainda não tem data marcada.

O que diz a lei

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Ana Paula observa a filha Rebeca enquanto Beatriz descansa no colo de Rafaela (Gustavo Luizon/VEJA.com)

A lei que rege a previdência social não prevê nenhum tipo de licença para a mãe que não gerou o bebê. Segundo a norma, o salário-maternidade deve ser pago somente à mãe biológica e “não poderá ser concedido o benefício a mais de um segurado” dentro do mesmo processo.

As advogadas do casal, Ana Carolina Hinojosa de Oliveira e Tereza Zabala, sustentam que essa lei está desatualizada. “Não condiz com a realidade da nossa sociedade hoje. E o direito precisa se adequar à sociedade. Já chegou a hora de a lei da Previdência mudar. Estamos nos pautando na lei maior, que é a Constituição Federal”, diz Oliveira.

Ela é presidente da Comissão de Diversidade Sexual e Combate à Homofobia da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de Campinas e Zabala, vice-presidente da mesma comissão.

Ambas alegam que em primeiro lugar vem o bem-estar da criança e a importância da convivência familiar nos primeiros meses de vida. Elas citam o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Declaração Universal dos Direitos da Criança, da ONU (Organização das Nações Unidas).

Dizem também que não faria sentido pleitear uma licença equivalente à paternidade, já que se trata de duas mães – que, além de tudo, estão amamentando. Também não consideram injusto que os dois membros do casal tenham direito a 120 dias, diferentemente das famílias heterossexuais.

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“Existe uma mentalidade antiga de uma igualdade formal, de que todos são iguais perante a lei. Mas existe um direito inovador que fala de uma igualdade respeitando as diferenças, que ampara as pessoas em sua pluralidade. Estamos falando de minorias vulneráveis, que sofrem discriminações e precisam de proteção”, afirma Zabala. “A igualdade é você respeitar as diferenças. Essa é a igualdade maior”, completa Oliveira.

Além disso, as advogadas lembram que as duas clientes são seguradas da Previdência. “Ambas recolhem, ou seja, não vai haver nenhum prejuízo para o INSS. Se pensarmos na proteção da família e dos bebês, o INSS fica em segundo plano”, diz Zabala.

Consultado por VEJA, o INSS informou que as regras em relação ao salário-maternidade independem da orientação sexual da segurada. Sobre o caso de Campinas, informou que havia implantado o benefício “devido a uma decisão proferida em tutela antecipada”. “A Procuradoria Federal que representa o Instituto recorreu da decisão e, liminarmente, foi concedido efeito suspensivo à decisão original. Assim, o INSS cessou o benefício que havia sido concedido. No momento, o processo ainda aguarda pronunciamento final de mérito por sentença.” O órgão afirma não ter um levantamento que mostre se houve no passado outros benefícios concedidos com o mesmo efeito.

Casos anteriores

Um caso parecido com o do casal de Campinas ocorreu em 2014, quando uma moradora de Brasília conseguiu na Justiça a licença-maternidade após sua companheira ter trigêmeos prematuros. O advogado dela, Tulius Fiuza Lima, afirma que não encontrou nenhuma decisão semelhante na época. “Foi o primeiro caso no país, que eu tenha conhecimento”, diz.

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Depois disso, Lima foi procurado por outro casal de mulheres em 2017 e, mais uma vez, conseguiu o benefício. A servidora pública Camila Mello, 35, teve direito a passar 180 dias cuidando da filha Laura, que teve com a bancária Ana Paula Mello, de 37 anos.

Laura, de 6 meses, foi gerada por Ana Paula, mas tem o material genético de Camila, cujos óvulos foram implantados na esposa. Assim como no caso de Campinas, as duas mães amamentam.

“Foi um ganho poder ter compartilhado com ela esse período da primeira infância. Ela não faz distinção, é muito apegada a nós duas. E conseguimos manter o aleitamento exclusivo por seis meses”, comemora Ana Paula.

A decisão, por enquanto, é temporária, por meio de liminar, pois o processo ainda não foi a julgamento. “Como não existe legislação sobre isso, fomos brigar pelo que achávamos que é justo. As duas somos mães, não achamos justo só uma ter o direito de ficar com a Laura nessa fase tão importante”, diz a bancária.

Para o advogado Tulius Lima, a tendência é que mais mulheres lésbicas busquem o benefício e que a Justiça reconheça a situação como diferente de uma relação heterossexual. Ele diz que, depois das duas vitórias na Justiça, já vem sendo procurado por outros casais na mesma situação.

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Presidente da Comissão de Diversidade Sexual do Conselho Federal da OAB, Maria Berenice Dias também acredita que a procura pela licença-maternidade dupla vai crescer, principalmente depois de uma resolução de novembro de 2017 que passou a permitir o registro de uma criança no nome de mais de um pai ou uma mãe diretamente no cartório. Até então, era preciso entrar com uma ação judicial.

‘Balde de água fria’

Segundo Ana Lúcia Lodi, fundadora da Associação Brasileira de Famílias Homoafetivas, atualmente é mais comum que a companheira de uma mulher que engravida peça o equivalente à licença-paternidade (que é de cinco ou de vinte dias, dependendo da empresa).

“Enquanto a mãe que gerou se recupera do parto, ela precisa que a companheira dê suporte. Faz-se uma analogia com os casais heterossexuais e leva-se em conta o interesse da criança. Às vezes nem precisa entrar na Justiça, algumas empresas já concedem diretamente”, afirma.

Lodi é pioneira no Brasil em buscar tratamento de reprodução assistida para ter filhos com uma mulher – ela e a ex-companheira são mães de um adolescente de 16 anos e de uma garota de 12. Ela acredita que é mais difícil justificar o pedido de uma licença-maternidade nesse caso. “Fica parecendo um privilégio em relação a casais heterossexuais, a não ser quando as duas amamentam, aí é outra história”, afirma.

Mas nem a licença-paternidade foi concedida à funcionária pública Tatiane Viana, 34, quando sua mulher, a analista de recursos humanos Bárbara Almeida Merlin, 36, engravidou de Leonardo, que hoje tem 9 meses.

Ela tirou cinco dias para cuidar das questões burocráticas e da recuperação pós-parto de Bárbara, enquanto aguardava a análise de seu pedido administrativo para obter o benefício. A resposta – negativa – veio oito meses depois. Os cinco dias foram considerados faltas injustificadas e descontados de seu salário.

“Depois de um tempão, do nada, chegou a carta. Foi muito dolorido. E aconteceu bem agora que estou desempregada, esse desconto caiu como um balde de água fria”, diz Bárbara.

Ela conta que ficou surpresa com a facilidade para registrar a criança em nome das duas. Também não houve dificuldade para incluir a esposa em seu plano de saúde. Mas, na hora de pedir a licença, o cenário foi outro.

“A Tati ficou três dias no hospital. Quem é que ia correr atrás de toda a burocracia? A licença não é para ficar em casa, descansando, é para resolver questões importantes”, afirma.

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