Carta ao Leitor: Um mal necessário
Precisamos falar de aborto sem tabu, sobretudo nos dias atuais, em que fanatismos ideológicos, ancorados na boa-fé dos cidadãos, substituem a sensatez

Em 1973, a Suprema Corte dos Estados Unidos determinou que “o direito ao respeito da vida privada, presente na 14ª Emenda da Constituição (…), é suficientemente amplo para ser aplicado à decisão de uma mulher interromper, ou não, sua gravidez”. A convicção, obtida com maioria de sete juízes a favor e apenas dois contra, significou a permissão do aborto no país. O julgamento fez história como o caso Roe x Wade. Jane Roe era o pseudônimo de Norma McCorvey, uma mãe solteira grávida pela terceira vez que desafiou a constitucionalidade da lei do Texas que tornava o aborto um crime. Henry Wade era o promotor de Dallas. Na semana passada, o vazamento de um parecer preliminar da Corte americana revelou que, em junho, quando o processo retornar ao escrutínio da Casa, haverá chances reais de ele ser anulado, dada a composição atual do tribunal, com seis juízes conservadores e três liberais.
Houve espanto e protestos nos Estados Unidos e em países da Europa diante do risco de retrocesso. Em quase todo o mundo, nos últimos anos, deu-se uma série de movimentos positivos, de modo a tratar o aborto como problema de saúde pública e não um nó estritamente religioso — embora se deva respeitar todas as posições diante de tema tão complexo e delicado. O Brasil, às vésperas de eleições presidenciais, será inevitavelmente engolido pela discussão — e convém estar atento. Questões morais e religiosas emperram um debate maduro. O avanço na discussão não implica banalizar o recurso — nem mesmo liberais defendem essa postura. É o caso do ministro Luís Roberto Barroso, do STF, em depoimento a VEJA, no ano passado: “O Estado e a sociedade devem procurar evitar que ele aconteça. Mas criminalização é uma má política pública e que penaliza, sobretudo, as mulheres mais pobres, que não podem utilizar o sistema público de atendimento”.
Dito de outro modo: ninguém quer o aborto, mas ele é um mal necessário para debelar um flagelo de saúde pública. Estima-se que 1 milhão de interrupções de gravidez sejam feitas no Brasil por ano. Dessas, apenas 2 000 pelas vias legais. E, contudo, em evidente passo atrás, de 69 projetos de lei sobre o assunto existentes no Congresso, 68 querem limitar ainda mais o procedimento, que no país só é permitido em casos de estupro, risco de morte da mãe e anencefalia fetal. Nos países desenvolvidos, nos quais o aborto é legalizado, morre menos de uma mulher para cada 100 000 interrupções de gravidez. Naqueles em desenvolvimento, onde a prática é normalmente considerada crime, morrem quarenta mulheres para cada 100 000 casos de descontinuação da gestação. É preciso, portanto, levar a controvérsia a sério — como fez VEJA ao longo de seus mais de cinquenta anos de história, em reportagens de capa que alimentaram o diálogo. Precisamos falar de aborto sem tabu, sobretudo nos dias atuais, em que fanatismos ideológicos, ancorados na boa-fé dos cidadãos, substituem a sensatez. Entender as nuances individuais e coletivas da decisão das mulheres, com amparo legal, é respeitar vidas.
Publicado em VEJA de 18 de maio de 2022, edição nº 2789
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