Carta ao Leitor: A língua é viva
Não deveria causar espanto o interessante fenômeno atual de adoção da linguagem neutra. Embora polêmico, é passo de inclusão a ser celebrado
“ — Queira vosmecê perdoar, mas o diabo do bicho está a olhar para a gente com tanta graça… Ri-me, hesitei, meti-lhe na mão um cruzado em prata, cavalguei o jumento, e segui a trote largo, um pouco vexado, melhor direi um pouco incerto do efeito da pratinha.” Vosmecê, leitor, talvez ache complicado atravessar as primeiras linhas do capítulo 21 de Memórias Póstumas de Brás Cubas, um clássico de Machado de Assis, publicado em 1880. No tempo de seu lançamento, ninguém o acusou de beletrismo exagerado. Assim era a fala das ruas, com o português bem tratado ao pousar numa página de papel. Aprendemos com Machado, hoje ainda e cada vez mais, que a língua é viva, molda e é moldada pela sociedade que a cerca. Talvez não exista ferramenta mais poderosa para medir as transformações sociais. Não deveria causar espanto, portanto, o interessante fenômeno atual de adoção da linguagem neutra — no cotidiano das relações informais, nas mensagens familiares por WhatsApp e nos vínculos profissionais. O recurso linguístico propõe o uso de expressões e troca de letras em palavras para incluir pessoas que não se identificam com o gênero feminino nem com o masculino: um “x”, um “e” ou uma arroba como substitutos da vogal “o” naqueles vocábulos que englobam o gênero masculino e feminino (termos como “todos”, “convidados”, “alunos”, “prezados”, para citar alguns exemplos).
Embora polêmico, é passo de inclusão a ser celebrado — como mostra a reportagem que começa na página 56. Ele traduz as reivindicações de um segmento da sociedade que é apartado. A existência da linguagem neutra, que começa a furar a bolha de grupos específicos, é bem-vinda ao espelhar tolerância e diversidade. Também não pode nem deve ser sinônimo de dogma (VEJA, vale ressaltar, não pretende mudar sua grafia). Mas o movimento existe e precisa ser acompanhado com o olhar histórico dedicado, por exemplo, aos protestos de libertação da mulher nos anos 1960. Houve quem os tratasse com preconceito ou desprezo, ou ambos — mas as demandas eram mais do que justas. Hoje, temos convicção absoluta de que o incômodo masculino daquele tempo foi totalmente condenável. Certamente, o repertório neutro também ganhará espaço na gangorra das relações humanas.
Louve-se, portanto, a decisão do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, que em novembro suspendeu por liminar uma lei aprovada pela Assembleia Legislativa de Rondônia que proibia a linguagem neutra nas escolas e nos editais de concursos públicos. Na época, Fachin afirmou que a nova forma de se comunicar “visa a combater preconceitos linguísticos retirando vieses que usualmente subordinam um gênero ao outro”. Não agradou a “todes” ou “tod@s”, mas foi uma decisão sábia — permitir a livre expressão é um passo necessário contra a discriminação. Ainda que por vezes tenda ao exagero, a batalha pela neutralidade pode operar, sim, uma transformação no nosso idioma , talvez corrigindo um erro para o qual não estávamos atentos antes (os verbos “judiar” e “denegrir” caíram acertadamente em desuso, em razão do racismo e preconceito). Portanto, a questão precisa ser discutida — e não proibida em decisão monocrática. Nos próximos meses, aliás, o tema vai ser julgado pelo plenário do Supremo Tribunal Federal. Será um debate muito interessante.
Publicado em VEJA de 26 de janeiro de 2022, edição nº 2773