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Luzia nas alturas

Como funciona a obra que suspende a uma altura de 31 metros do chão a quase centenária capela de Santa Luzia, tombada como patrimônio cultural de São Paulo

Por João Pedroso de Campos Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 10 jul 2018, 19h03 - Publicado em 5 jul 2018, 17h59
A escavação abaixo da capela Santa Luzia, na Bela Vista, em São Paulo, parte do projeto do complexo comercial Cidade Matarazzo (Heitor Feitosa/VEJA.com)

A inusitada imagem de uma obra de engenharia intrigou internautas nas redes sociais na semana passada. A cena mostra uma capela suspensa a 31 metros do chão, postada sobre uma plataforma de concreto e sustentada por oito pilares, quatro de um lado, quatro do outro. “A engenharia é fascinante”, admirou-se um usuário do Facebook, enquanto outra, igualmente espantada, escreveu: “achei que fosse uma maquete”.

A igrejinha que protagoniza a foto é a capela de Santa Luzia, em São Paulo. Projetada pelo arquiteto italiano Giovanni Battista Bianchi, ou simplesmente João Bianchi, como ficou conhecido no Brasil, a capela foi inaugurada em 1922 nas dependências do Hospital e Maternidade Umberto I, o antigo Hospital Matarazzo.

Com doze edificações tombadas como bens culturais de interesse histórico-arquitetônico pelo governo paulista, em 1986, incluindo a capela, o hospital está dentro de uma área de cerca de 27.000 metros quadrados entre a Rua Itapeva e a Alameda Rio Claro, nas imediações da Avenida Paulista, a apenas 500 metros do Museu de Arte de São Paulo (Masp), um dos principais cartões-postais da maior cidade brasileira.

A construção que rendeu a imagem impressionante é parte do canteiro de obras aberto em 2015 pelo grupo francês Allard, que investe na reforma de prédios históricos e faz deles empreendimentos comerciais. Quatro anos antes, a empresa comprou, por 117 milhões de reais, a área do Hospital Matarazzo, fechado e abandonado desde 1993, para transformá-lo no Cidade Matarazzo, um complexo com hotel seis-estrelas, apartamentos, lojas de grife, restaurantes, cinema e teatro.

O empreendimento, que custará cerca de 1 bilhão de reais e tem inauguração prevista para o início de 2020, terá ainda uma torre de 24 andares projetada pelo arquiteto francês Jean Nouvel, vencedor em 2008 do prêmio Pritzker Prize, o mais prestigioso da arquitetura.

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Diante da imposição, pelo decreto de tombamento, do mais alto grau de proteção à capela de Santa Luzia e à Maternidade Condessa Filomena Matarazzo, sua vizinha, as razões de ser da imponente estrutura de concreto armado sob a igreja são, além de aproveitar ao máximo o espaço, mantê-la exatamente no local onde repousa há quase um século – mesmo durante a escavação de 31 metros abaixo dela para a construção de oito andares de subsolo.

O espaço sob a capela terá uma área de desembarque de passageiros, bicicletário, um cinema com 108 lugares e seis andares de estacionamento, com 1.515 vagas no total – número ajustado ao impacto do empreendimento no tráfego na região da Paulista e aprovado pela Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) paulistana.

A estrutura sob a capela de Santa Luzia será integrada ao subsolo da torre comercial de cinco andares a ser erguida ali ao lado. A igreja também será restaurada e voltará a receber celebrações quando o Cidade Matarazzo for inaugurado.

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Modo de fazer

O procedimento que estacionou a capela de Santa Luzia no topo da estrutura de concreto, enquanto escavações removiam o solo abaixo dela, é parte de uma técnica pioneira no Brasil, prevista no projeto assinado pelos engenheiros Mario Franco e Carlos Eduardo Moreira Maffei.

As escavações começaram em outubro de 2017, depois do devido sinal verde à empreitada pelos órgãos estadual e municipal de preservação do patrimônio histórico: Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo) e Conpresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo).

A previsão para a conclusão da escavação e da construção das estruturas abaixo da capela é setembro de 2018. Ao final, a obra terá custado cerca de 5 milhões de reais.

O primeiro passo para o trabalho foi a demolição de um prédio de quatro andares que ficava à frente da igreja, em setembro de 2016.

Já sem o edifício por ali, e ainda antes de iniciar a escavação sob a capela, os engenheiros responsáveis isolaram a área a ser escavada com contenções de concreto, construídas a 31 metros de profundidade. Pretendia-se, com isso, evitar que a terra viesse abaixo:

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Com o terreno isolado, as atenções se voltaram à joia da coroa: a capela de Santa Luzia.

A primeira etapa por ali foi a construção das oito estacas, os “estacões”, que compõem a nova fundação da capela e suportam suas 1.075 toneladas. Foram abertos oito buracos de 54 metros de profundidade e 1 metro de diâmetro no solo, quatro de cada lado da edificação, depois preenchidos com 54 metros cúbicos de concreto, processo que levou cinco dias de trabalho. Cada um dos pilares suporta 500 toneladas:

Em seguida, o piso da capela foi demolido – a parte original do assoalho, de mármore, que lá estava desde 1922, foi catalogada, armazenada e será reposta depois do fim da obra. Cada peça será recolocada exatamente onde estava. O altar, também de mármore, continua na capela durante a obra e ganhou uma base extra de sustentação para evitar trincas.

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Concluída a etapa do piso da igreja, foi feita uma escavação em volta da capela, até que ficassem totalmente aparentes a sua fundação original, 1,5 metro abaixo do solo, e as extremidades das oito estacas:

No próximo passo, os engenheiros fizeram sete “furos” em cada lado da fundação original da capela e passaram através de cada um deles, horizontalmente, no nível do piso da edificação, peças alongadas de concreto, conhecidas como vigas. As sete vigas abaixo da capela estão apoiadas nas estacas da nova fundação e têm entre si vigas menores:

A seguir, preencheu-se com concreto o “esqueleto” de vigas para formar uma plataforma, tecnicamente conhecida como laje, onde a capela passaria a se sustentar. A laje abaixo da igrejinha, que passou a ser o chão dela, tem 19 metros de comprimento, 17 metros de largura, 1,15 metro de espessura e levou dois meses para ficar pronta.

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Abaixo da nova plataforma de concreto, restava ainda um pedaço da fundação original da capela, ainda apoiado diretamente no solo. Isto é, embora a igreja já estivesse sobre a laje de concreto, a sustentação de seu peso não havia sido integralmente transferida para a plataforma.

Para “descolar” antiga base da capela do solo e deixá-la apoiada somente sobre a nova estrutura, sem, no entanto, causar-lhe avarias, era necessário um método cirúrgico de remoção de terra. Utilizou-se, então, um jato de água de alta pressão, processo conhecido como hidrojateamento, para tirar cerca de 7 centímetros de terra sob a fundação original (assista ao vídeo abaixo).

Já sem contato com o chão, a capela passou a se apoiar somente na laje de concreto, sustentada, por sua vez, pelas oito estacas fincadas a 54 metros de profundidade.

Depois da estabilização da capela de Santa Luzia sobre a estrutura de concreto armado, passou-se a utilizar escavadeiras, muito menos delicadas que o jato de água, para retirar a terra dali em diante. Até o momento, foram escavados 28 metros de profundidade abaixo da capela – o projeto prevê 31 metros – e concluídas outras duas lajes. Uma terceira está em construção e haverá, ainda, uma quarta.

Em seguida, de baixo para cima, entre as lajes construídas, serão feitas outras três, que completarão, enfim, os oito andares. Destinadas a suportar toda a estrutura, as estacas seguem mais 23 metros solo abaixo.

Para concluir a escavação dentro do prazo esperado, até setembro, quatro retroescavadeiras trabalham dez horas por dia no local, entre 8h e 18h – os turnos são encerrados por causa da barulheira do maquinário na vizinhança. Apenas na região da capela e da futura torre de escritórios, havia 100.000 metros cúbicos de terra, dos quais 25% ainda serão removidos. As chuvas do início deste ano atrasaram a escavação em cerca de três meses.

São retirados do local, em média, 55 caminhões de terra por dia, cada um recheado com uma média de 14 metros cúbicos – o número já chegou a 94 caminhões diários. O solo é levado a um aterro na região de Cotia, na Grande São Paulo, a cerca de 40 quilômetros do canteiro de obras na capital paulista – localização que impede uma velocidade maior na escavação, em função das dificuldades na logística de escoamento da terra.


Técnica representa o menor risco à capela, diz engenheiro

Com cerca de 2.500 obras de engenharia no currículo ao longo de 65 anos de carreira, o engenheiro aposentado Mario Franco, de 89 anos, elege o projeto da escavação sob a capela de Santa Luzia entre os vinte mais complexos que assinou. Ele fez à mão os primeiros cálculos da estrutura construída sob a igreja.

“No Brasil, certamente é pioneiro. O que é importante é que a capela é muito pesada e a escavação, muito funda. Se você escava dois andares, é uma coisa, se você escava oito… Nunca tinha visto isso em lugar nenhum”, diz Franco, que passou pouco mais de quatro anos, entre 2012 e 2017, projetando o Cidade Matarazzo.

Segundo Mario Franco, a solução para a capela foi encontrada por ele e o engenheiro Carlos Eduardo Moreira Maffei diante dos planos irredutíveis do empresário francês Alexandre Allard, dono do empreendimento, de ter um cinema sob a igreja.

Franco conta que até haveria outras técnicas para executar a obra sob o templo – uma delas seria colocar trilhos sob a edificação e tirá-la do lugar, para depois recolocá-la onde esteve nos últimos 96 anos. Ele pondera, contudo, que mantê-la no lugar, transferir sua fundação e cavar abaixo dela foi a solução mais segura para a capela. “Outras obras já usaram trilhos para mudar um edifício de lugar, mas, estudando as várias possibilidades, a melhor, a que tinha menos risco, sobretudo menos risco de estragar a capela, foi essa”, afirma Franco.

Mario Franco cita como “chave” ao sucesso da empreitada abaixo da capela a utilização dos jatos de água de alta pressão que removeram, lenta e gradualmente, a terra sob a fundação original. “O hidrojatemento eu inventei na minha cabeça, depois de muitas noites de insônia”, brinca.

O engenheiro Mario Franco, 89 anos, responsável pelo projeto do Cidade Matarazzo (Heitor Feitosa/VEJA.com)

O engenheiro Mauricio Bianchi – sem nenhum parentesco com o arquiteto Giovanni Bianchi, que projetou a capela – está à frente do canteiro de obras do Cidade Matarazzo há cinco anos. É ele, portanto, o responsável por colocar em prática o projeto de Mario Franco e Carlos Eduardo Maffei – “duas sumidades no mercado”, nas palavras de Bianchi.

Ao relatar um procedimento primitivo, mas efetivo, adotado durante a demolição do prédio vizinho à igreja, o diretor da construção dá a medida da preocupação com a integridade da quase centenária capela paulistana. “Tomamos uma série de precauções, entre elas colocar um copo d’água no peitoril da capela, para que uma pessoa ficasse olhando se havia transmissão de vibração durante a demolição. Esse copo ficou famoso aqui”, lembra Bianchi, de 57 anos e “1 milhão e meio de metros quadrados construídos na carreira”, como diz.

Para Mauricio Bianchi, um imperativo em uma obra como esta é a “antecipação de riscos”. Poucas coisas são tão indesejadas em um canteiro de obras, observa o engenheiro, quanto o que ele chama de “gestor de autópsia”. “A gestão de autópsia é uma tarefa muito simples. Aparece um problema e ele diz: ‘poxa, eu sei explicar porque aconteceu’. Mas não soube explicar porque iria acontecer”, afirma.


‘Nada é feito sem consultar órgão de patrimônio histórico’, afirma diretor

A capela de Santa Luzia, assim como a Maternidade Condessa Filomena Matarazzo, estão sob o mais alto grau de preservação a edificações tombadas como “bem cultural de interesse histórico-arquitetônico” em São Paulo.

O decreto de tombamento, assinado no dia 30 de julho de 1986 pelo então secretário estadual de Cultura, Jorge da Cunha Lima, impõe aos edifícios o “Grau de Proteção 1”, que prevê “preservação integral, admitidas pequenas reformas internas”. Há outros cinco prédios do complexo do hospital Umberto I tombados no Grau 2 (preservação de fachadas, coberturas e gabaritos) e cinco no Grau 3 (preservação de volumetria).

Segundo o Condephaat, órgão estadual dedicado à preservação do patrimônio histórico, e o Conpresp, municipal, as intervenções propostas pelos engenheiros do Cidade Matarazzo nos edifícios tombados, incluindo a escavação sob a capela, foram aprovadas. “Devido à complexidade da obra, a única exigência foi o acompanhamento da obra, que é feito mensalmente pelos técnicos”, informa o Conpresp.

A diretora do Grupo de Conservação e Restauro de Bens Tombados do Condephaat, Erika Hembik Borges Fioretti, classifica a obra como um caso de “sucesso” em restauração e engenharia, “uma vez que o conjunto tombado terá sua permanência garantida com restauro e reúso de elementos edificados e, em especial à capela, não tendo havido danos que comprometessem sua estabilidade estrutural e sua integridade, salvo algumas fissuras, irrisórias considerando-se a amplitude da intervenção de acréscimo de fundações e escavações em seu entorno”.

O diretor da construção do Cidade Matarazzo, Mauricio Bianchi, diz que o empreendimento mantém uma relação “muito boa” com Condephaat e Conpresp. “Nada está sendo feito sem um acompanhamento deles, nada”, ressalta o engenheiro. “Apresentávamos o que queríamos fazer e eles davam permissão ou não, explicando o porquê. Não era um ‘não’ arbitrário”, relata.

Veja na galeria abaixo imagens antigas da capela de Santa Luzia, fotos da obra e da maquete do Cidade Matarazzo:

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