Desde que assumiu o governo, em 2019, Jair Bolsonaro se empenhou numa cruzada contra o Supremo Tribunal Federal e seus ministros. Um de seus filhos, o deputado Eduardo Bolsonaro, chegou a dizer, durante a campanha eleitoral que elegeu seu pai, que bastaria um cabo e um soldado para fechar a Corte. “Se você prender um ministro do STF, você acha que vai ter uma manifestação popular a favor dos ministros?”, provocou na época o Zero Três. Adepta de teorias da conspiração, a família acreditava que o tribunal estaria empenhado em cassar o capitão caso ele vencesse a disputa. As hostilidades continuaram depois da posse. Irascível, o presidente incentivou manifestações contra o Supremo, elegendo-o como um grande inimigo. Cruzando os limites da responsabilidade, participou de uma delas, promovida em frente a um quartel do Exército. Não se sabe se as ameaças eram bravata ou distopia do ex-mandatário, mas o fato é que, por quatro anos, a mais alta corte de Justiça do país foi alvo de uma intensa campanha de desqualificação que continua provocando situações inquietantes.
Na sexta-feira 14, o ministro Alexandre de Moraes e o filho dele, o advogado Alexandre Barci de Moraes, foram hostilizados por uma família de brasileiros no aeroporto de Roma, na Itália. Desde que assumiu a linha de frente de inquéritos que miram Bolsonaro e apoiadores do ex-presidente investigados por ataques à democracia, financiamento de ameaças ao Supremo e divulgação de notícias falsas, Moraes se transformou numa espécie de símbolo da resistência e da reação às intimidações sofridas pelo tribunal. O ministro, que está de férias, retornava de uma palestra num fórum de direito realizado na Universidade de Siena quando foi abordado. Na versão que reportou à polícia, ele contou que foi xingado de “bandido”, “comunista” e “comprado”. O filho do ministro, que tem 27 anos, teria tentado defender o pai e foi agredido durante a confusão.
Acionada, a Polícia Federal abriu inquérito para apurar o caso. De volta ao Brasil, o empresário Roberto Mantovani, sua esposa, Andréia, e o genro Alex Zanatta — os acusados — tiveram celulares e computadores apreendidos para averiguação, foram intimados a prestar depoimento e negaram ter agredido o juiz. A defesa do trio afirma que a confusão teve início quando Andréia protestou pelo fato de suspeitar que o ministro havia ingressado na sala VIP do aeroporto sem respeitar a fila. Ela teria sido agredida verbalmente pelo filho de Moraes, momento em que o empresário disse que interveio na discussão e afastou o rapaz com os braços. Os investigadores requisitaram as imagens das câmeras de segurança do aeroporto de Roma. Ex- candidato a prefeito de Santa Bárbara d’Oeste (SP), o empresário é filiado ao PSD, partido da base aliada do governo Lula. Ele, a esposa e o genro podem responder por injúria, crime por ofender a dignidade de alguém, punido com até seis meses de detenção, podendo ser ampliado para até um ano de cadeia se comprovado o emprego de violência.
Dois dias antes, o vice-presidente do STF, Luís Roberto Barroso, protagonizou um episódio desnecessário, daqueles que acabam ajudando a realimentar o ódio ao invés de combatê-lo. Em situações normais, a presença de um magistrado num evento como o da União Nacional dos Estudantes poderia até ser vista com reserva, mas não geraria tanto ruído. Barroso, no entanto, foi além do que precisava — logo ele, um dos ministros mais ponderados e de bom senso da corte. A certa altura, criticado por um grupo de manifestantes, ele resolveu discursar. Ladeado pelo ministro da Justiça do governo Lula, de mangas arregaçadas e num tom de palanque, ele rebateu os protestos dizendo que o bolsonarismo havia sido vencido. “Nós derrotamos a censura, nós derrotamos a tortura, nós derrotamos o bolsonarismo para permitir a democracia e a manifestação livre de todas as pessoas”, disse. A fala repercutiu mal, gerou protestos, e despertou até mesmo o sempre discreto e avesso a polêmicas Rodrigo Pacheco, presidente do Congresso, que exigiu uma retratação pública do magistrado. Barroso disse ter sido mal interpretado, que se referia ao extremismo, que não pretendia ofender os eleitores do ex-presidente, mas o estrago já tinha sido feito.
Desde que os ânimos se acirraram, a partir de 2019, os ministros do STF são acompanhados por um forte esquema de segurança. Policiais passaram a fazer incursões prévias em locais de palestras e viagens, mapear potenciais ameaças e monitorar comentários agressivos publicados em redes sociais. Além disso, a segurança pessoal de todos eles foi reforçada, a maioria evita locais públicos e, por precaução, alguns tiraram os filhos do país. A punição exemplar, dentro dos limites que a lei estabelece, porém, certamente é a maneira mais eficiente de evitar que divergências políticas ou ideológicas evoluam para ataques e agressões. Em sua insana cruzada contra o Poder Judiciário, Bolsonaro desafiou ministros, insuflou apoiadores contra os tribunais, discursou contra a legitimidade do resultado eleitoral, divulgou fake news sobre vulnerabilidades no sistema de votação e tentou desacreditar as urnas eletrônicas. Alguns dos seguidores e admiradores decerto veem esse tipo de comportamento como autorização ou até mesmo incentivo para ações extremadas.
Barroso, aliás, já foi uma das vítimas preferenciais dos seguidores do capitão, especialmente quando estava na presidência do Tribunal Superior Eleitoral. Nos momentos mais tensos, relatou temer pela família. A filha, que estuda nos Estados Unidos, já recebeu ameaças pelo celular. No fim do ano passado, o próprio ministro foi xingado e perseguido em uma cidade de Santa Catarina. “Quando eu saio, uma procissão de seguranças me acompanha”, reclama. A terrível experiência com os ataques já atingiu praticamente todos os integrantes do STF — antes do governo Bolsonaro, por exemplo, o prédio onde a ministra Cármen Lúcia tem apartamento, em Belo Horizonte, foi pichado após ela votar contra um recurso que permitiria a Lula responder às acusações da Lava-Jato em liberdade. Em um almoço recente em São Paulo, o próprio Alexandre saiu ladeado por cerca de vinte pessoas após provocações de clientes. Pouco tempo antes, passou por episódios públicos de hostilidade em uma padaria em Brasília e em um hotel onde estava hospedado no Rio de Janeiro. “Eu não quero a vida do Alexandre”, disse, sob reserva, uma autoridade que acompanhava o ministro em São Paulo.
Com os ataques de 8 de janeiro, a preocupação com a segurança do STF atingiu níveis extremos. O prédio está completamente cercado por grades, a quantidade de armamentos foi multiplicada e abriu-se um pregão para a contratação de segurança armada no Paraná, onde mora a família do ministro Edson Fachin, e para o aluguel de carros blindados no Rio, estado natal de Luiz Fux e Barroso. “A partir do momento em que cresceu a sensação de que a democracia estaria em risco por conta da gestão do Bolsonaro, a sociedade de alguma forma entendeu que era adequado dar ao Judiciário uma carta branca para gerir o país”, diz o advogado constitucionalista André Marsiglia, alertando para os riscos que uma decisão como essa impõe. Não há nada, porém, que justifique agressões e ataques. O Supremo é a última instância da Justiça e dono da palavra final em conflitos. Desacreditá-lo — e pior ainda, atacá-lo — é decretar a morte da própria democracia.
Publicado em VEJA de 26 de julho de 2023, edição nº 2851