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A peregrinação dos desabrigados em Niterói

Por Aline Erthal, de Niterói
9 abr 2010, 23h19

David, seis anos, corre pela rua: “Todo mundo sai de casa! Vão derrubar tudo! Sai de casa!” A princípio, a vizinhança não dá muita importância para o que seria mais uma história do menino espevitado. Mas logo depois a confirmação vem de porta em porta. Funcionários da Defesa Civil avisam os moradores das redondezas do Morro do Bumba, onde ocorreu um deslizamento de terra que soterrou mais de 50 casas na quarta-feira, em Niterói, para desocupar a área. Urgentemente. É outro grupo que se junta aos mais de 11.500 desabrigados pela chuva no estado.

Desde bem cedo, a mãe de David, Hortência Vasconcelos, faz malabarismos para encaixar cada filho em algum lugar. O plano inicial, pensado e repensado, é: Gilbert, 18, e Natana, 16, dormem com a avó paterna, no bairro do Fonseca; David fica com o pai, em São Gonçalo; e Hortência fica com Larissa, de 13, na casa da patroa da mãe, em Santa Rosa. “Mandaram a gente sair agora porque nossas casas foram condenadas. Mas não temos outro lugar para ir. Estou sem direção”, balbucia ela, enquanto vizinhos e amigos trocam informações sobre desaparecidos.

A assistente de enfermagem Vânia dos Santos é uma das primeiras vizinhas a receber o alerta do menino David. Olha com pena para a parede recém-reconstruída dos fundos da casa, chama Hanna, a filha, e começa a arrumar as coisas para a mudança. “No Réveillon passado, caiu o barranco do vizinho de cima, derrubando tudo por aqui. Perdemos armário de cozinha, guarda-roupa, cama. E, agora, um baque atrás do outro: o Cubango inteiro vindo abaixo, amigos da vida inteira soterrados, pessoas desesperadas na rua. No meio de tudo isso, temos que deixar nossas casas, nossas coisas, de uma hora para outra”, desabafa Vânia. Para onde elas vão? Mãe e filha não sabem responder. Talvez para a casa da avó de Hanna. Talvez procurar um imóvel para alugar. No momento, só conseguem arrumar as malas, pedir notícias de vizinhos, tentar imaginar como será o dia seguinte.

O pequeno David passa correndo de novo, agora do outro lado da calçada, dando tchau. Caminha com a irmã Larissa até o ponto de ônibus, de onde ela vai para o trabalho da avó. Fumaça e poeira embaçam a vista, pessoas andam aos prantos. O cheiro do “mini-IML” (estacionamento provisoriamente convertido em local para reconhecimento de cadáveres) cresce ao longo do dia. “O saco preto é para colocar corpo”, explica o menino.

Dentro de casa, Hortência, ainda desnorteada, tenta descobrir como transportar geladeira, fogão, cama. “O pai vem buscar o David. Depois vou de ônibus para o serviço da minha mãe. Amanhã passo aqui e pego o que mais der e vou procurar casa para alugar. Mas fora daqui é tão caro, o que vai ser, meu Deus?”, pensa alto, enquanto mira os móveis, confunde-se com datas, arruma a bolsa de roupas, conta como não dorme desde a hora do acidente. Ela enumera conhecidos perdidos. Uma vizinha conta sua peregrinação pelo Rio, Niterói e Tribobó para tentar reconhecer vítimas do acidente.

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“Mãe, você viu o rapaz que passou aqui morto? Todo sangrando, passou descoberto”, irrompe David na sala, eletrizado. O menino mal sai do portão de casa. Olhos enormes pregados em tudo e todos, ouve conversas, dá pitacos, vê uma procissão de corpos.

Logo em frente, no meio da rua, Geisa Santos estica o pescoço para cima. Sua casa é uma das que apresentam maior risco de deslizar, mas tudo o que dá pra fazer agora é olhar. Ela não pode subir nem para buscar o cachorro de estimação. Está aflita desde as 11h, quando vizinhos disseram que bandidos estão assaltando as casas desocupadas. Geisa e mais sete pessoas dividem o pequeno apartamento de um parente em São Gonçalo, e nem lá se veem livres do trauma da chuva: “É reboco caindo, goteira para todos os lados. A gente vai se lembrando de tudo o que aconteceu e sente um horror imenso.”

Já são quase seis horas da tarde e nada do pai de David. Uma multidão de pessoas carregando sacos, caixas, malas, colchões e travesseiros desliza pela Estrada do Viçoso Jardim. Deixam para trás casa, bicho de estimação, lembranças, mortos. Sem telefone e com luz oscilante, Hortência fica cada vez mais tensa. O outrora agitado David, agora encostado em um carro dos Bombeiros, conta que a demora é até boa, pois está esperando o primo Caíque, de três anos. Que está soterrado.

Todos vão embora, para os locais planejados por Hortência, que decide partir também. Menos David, que esperou em vão pelo pai. O garoto fica com ela esta noite, de favor no emprego da avó. Amanhã, ninguém sabe.

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