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A guerra de facções que assola Caucaia, a cidade mais violenta do Brasil

Município turístico de 265.000 habitantes na região metropolitana de Fortaleza teve 98,6 assassinatos por 100.000 em 2020, quatro vezes a taxa nacional.

Por Caíque Alencar 21 ago 2021, 15h15

Segundo maior município do Ceará, com 265.000 habitantes, a cidade de Caucaia, que fica na região metropolitana de Fortaleza, é também o segundo principal destino turístico cearense, atrás apenas da capital, em razão de suas belas praias, como a de Cumbuco, um dos cartões-postais cearenses. Sede do Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP), a cidade ostenta também o terceiro maior PIB do estado – é do porto e do turismo que vêm as principais fontes de renda da localidade. Em termos sociais, a cidade tem um IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) de 0,682, considerado médio – a taxa nacional é de 0,727.

Vista da praia de Cumbuco, em Caucaia, no Ceará
Vista da praia de Cumbuco, em Caucaia, no Ceará (./Divulgação)

Seriam bons indicadores para um município brasileiro de porte médio não fosse um dado preocupante: Caucaia foi em 2020 a cidade mais violenta do Brasil. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, a taxa de assassinatos intencionais chegou 98,6 por 100.000 habitantes, muito acima da média nacional, que foi de 23,6, e mais que o dobro do índice do estado, de 45,3 (que também é muito alto). O principal motivo? Para os especialistas, a disputa pelo controle do tráfico de drogas entre facções criminosas.

Segundo o membro do Conselho do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Daniel Cerqueira, nos últimos anos, houve diminuição na área de plantação de coca em países como Colômbia, Bolívia e Peru – como consequência, houve queda de produção e uma escalada de violência entre facções criminosas na briga pelo controle de regiões utilizadas para o escoamento de droga. Esse é o ponto central dos conflitos: com as mercadorias escassas, o crime organizado procura mais opções de vendas. “Muitas cidades litorâneas fazem parte da rota para o tráfico internacional que chega à Europa, ao Oriente Médio e à Ásia. São verdadeiros corredores de droga. A pandemia só colocou mais lenha nessa fogueira. Além da queda no atacado, o isolamento social diminuiu a interação entre as pessoas e isso impactou na lucratividade do tráfico pelo varejo interno”, diz Cerqueira.

Vista do complexo portuário de Pecém, no município de Caucaia (CE)
Vista do complexo portuário de Pecém, no município de Caucaia (CE) (./Divulgação)

Outro fator que contribuiu para deteriorar os números de violência em todo o estado foi a greve de policiais enfrentada pelo Ceará em fevereiro de 2020. A paralisação, que durou treze dias, fez o estado atingir um pico de homicídios naquele mês – segundo dados da Secretaria de Segurança Pública, os homicídios foram 459, um aumento de 180% em comparação com fevereiro do ano anterior. Nas quase duas semanas em que policiais ficaram de braços cruzados foram registrados 312 assassinatos. “São nesses momentos de crise institucional que os grupos criminosos veem a oportunidade para ocupar espaços. Isso ocorre após eles terem uma percepção de desorganização, incerteza e insegurança”, completa o membro do Conselho do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

A paralisação policial, porém, não explica sozinha o aumento da violência. Dados da série histórica do Atlas da Violência dos municípios, realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), mostram que Caucaia teve um aumento vertiginoso na taxa de homicídios. No início dos anos 2000, o índice ficava em torno de 26 mortes por 100.000 habitantes – em 2016, essa taxa chegou 49,7 e, entre 2018 e 2020, atingiu 84,2. A avaliação de Cerqueira é a de que os números são o retrato de uma política falha de segurança pública, com o Estado pouco presente para evitar que o crime se consolide.

Essa hipótese levantada pelo especialista do Fórum Brasileiro de Segurança Pública já é bastante conhecida entre os estudiosos. Segundo Jamieson Simões, pesquisador de dinâmicas criminais do programa de pós-graduação em sociologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), a disparada de violência se deve a um fenômeno conhecido na academia como “efeito balão”. O conceito é utilizado para explicar a alta de índices de criminalidade onde o poder público tem presença mais fraca. “Dentro do balão, quando a pressão aumenta em um ponto, o fluxo de ar se move para áreas de menor resistência. É esse o comportamento que as facções fazem”, explica Simões.

O processo começou principalmente a partir de 2016, quando organizações criminosas da região Sudeste, como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), fizeram uma espécie de migração. Os destinos foram estados nordestinos, com foco principal nas cidades com condições mais favoráveis para o tráfico de drogas. “O Ceará é o estado que tem as melhores condições. Fica mais próximo da Europa, está na orla dos circuitos internacionais de turismo e tem uma infraestrutura de escoamento muito boa. Em Caucaia, por exemplo, a passagem é obrigatória para quem quer chegar ao porto de Pecém. O complexo logístico do Ceará é tão grande que as mesmas rotas são utilizadas tanto para o mercado lícito quando o ilícito”, afirma o pesquisador da UFC.

Policiais em Caucaia, cidade que enfrenta guerra de facções pelo controle do tráfico de drogas
Policiais em Caucaia, cidade que enfrenta guerra de facções pelo controle do tráfico de drogas (./Divulgação)

Hoje, a disputa pelo controle do tráfico no Ceará é protagonizada pelos Guardiões do Estado (GDE), que tem origem local, e pelo Comando Vermelho (CV), facção do Rio de Janeiro que foi “importada” pelo estado. Os dois grupos criminosos têm como modus operandi o recrutamento de jovens e adolescentes, se aproveitando de um cenário de desigualdade social em que as famílias precisam garantir renda e o tráfico oferece uma saída rápida, mas que coloca a vida de meninos em jogo. “Essa situação da criminalidade só vai se resolver quando a polícia deixar de ter uma atuação reativa”, diz a pesquisadora Ana Letícia Lins, da Rede de Observatórios da Segurança e do Laboratório de Estudos da Violência (LEV) da UFC.

Na prática, o que se desenhou diante desse cenário em Caucaia transformou a cidade em uma colcha de retalhos, onde tampouco o GDE ou o CV tem controle total sobre o município. Na maioria dos casos, as divisões são feitas, inclusive, por bairros. “É um conflito constante que acontece em ciclos periódicos, como se fosse uma montanha-russa. As mudanças nos territórios que cada facção controla são recorrentes e uma pacificação depende sempre de armistícios acordados entre elas”, diz Daniel Cerqueira, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O problema é quando não há esse tipo de acordo e traficantes são encontrados comercializando fora de suas áreas de controle. Invariavelmente, essas situações resultam em vítimas entre os próprios moradores, que são muitas vezes atingidos por balas perdidas até em casa. Em 2020, o Ceará registrou 20 assassinatos de crianças entre zero e 11 anos, resultando em uma taxa de 27,2 mortes por 100.000 habitantes nessa faixa etária.

Procurado por VEJA, o secretário de Segurança Pública e Defesa Social do Ceará, Sandro Luciano Caron de Moraes, admite a situação grave que atingiu o Ceará em 2020, mas aponta a pandemia como o motivo principal para o descontrole da segurança. “Em março, mais de 12 mil policiais foram afastados por suspeita de contaminação. O ano de 2020 foi violento mesmo, mas essa já não é mais a realidade do Ceará”, diz o chefe da pasta, que aponta como saldo positivo a queda de crimes violentos em 28% no primeiro semestre deste ano e a criação de forças-tarefas de combate à criminalidade sob sua gestão.

O prefeito de Caucaia, Vítor Valim (Pros), afirma que providenciou obras em iluminação, instalação de câmeras e ampliou o policiamento com o pagamento de horas extras, totalizando um valor investido de 3,9 milhões de reais. O resultado, de acordo com o gestor, foi uma redução de 56% nos crimes contra a vida. Nesses casos, as quedas nos índices de criminalidade são bem-vindos, mas levando em conta o estouro de um 2020 considerado “atípico” pelas próprias autoridades, diminuições já eram previstas. A ver se daqui para frente os resultados vão continuar em queda.

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