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A eclética aldeia indígena da capital federal

De bordunas em punho, grupo de 50 pessoas tenta barrar a construção de um novo bairro no centro de Brasília. Funai não reconhece local como terra indígena

Por Gabriel Castro
5 nov 2011, 08h57

Depois de ouvir um pedido para que posasse para uma fotografia, Gilberto Fulniô pediu que o repórter esperasse: “Vou ali pegar o cocar”

Nesta sexta-feira, a cena registrada nos dias anteriores voltou a se repetir: pintados para a guerra e armados com bordunas, índios se colocaram em frente a um trator e impediram o maquinista de trabalhar, no centro de uma clareira aberta em mata nativa. O episódio não aconteceu no coração da Amazônia, muito menos em uma reserva ambiental no Mato Grosso. O palco do embate foi o centro da capital federal, onde começa a surgir um bairro residencial de altíssimo padrão.

O Setor Noroeste é uma ideia do próprio Lúcio Costa, pai do desenho urbanístico de Brasília. Ao revisar seu projeto, nos anos 1980, Costa encravou dois novos bairros debaixo das asas do avião: o Sudoeste, erguido nos anos 1990, e o Noroeste, que começa a sair do papel. O metro quadrado ultrapassa os 10.000 reais, mais caro que o de bairros como o Jardim Paulista e o Itaim Bibi, em São Paulo. Alguns esqueletos de prédios já foram erguidos. No local viverão 30.000 pessoas. Nada parecia poder impedir a força dos tratores – não fosse um grupo de 50 índios protestando no meio do terreno.

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Gabriel Castro

Quando os pioneiros começaram a construção de Brasília, não havia sinal da presença indígena. Estudiosos apontam que a região era apenas um ponto de passagem de grupos nativos que nunca se fixaram na área onde hoje é o Distrito Federal. Então, de onde vêm os ocupantes da área em disputa? Os moradores, integrantes dos grupos Fulniô, Guajajara, Kariri-Xocó e Terena, dizem que a área começou a ser frequentada ainda em 1957 por “parentes” que se mudaram para o Centro-Oeste com o intuito de trabalhar na construção da nova capital. “Eles queriam fumar o nosso cachimbo e o homem branco não gostava”, explica João Fulniô, que veste bermuda com cinto, usa um relógio dourado e é reconhecido como uma das lideranças da comunidade. “Por isso vieram para cá”.

A própria Fundação Nacional do Índio (Funai) não reconhece o local como uma área tradicional dos indígenas, vindos majoritariamente do Nordeste. Mas, desde 2008, o grupo tem travado uma insólita batalha para permanecer no local. Um advogado chegou a exigir 75 milhões de reais de indenização em nome da comunidade, sem sucesso. “Nós vamos ficar aqui de qualquer jeito”, garante João Fulniô. Uma das razões para a resistência é o Santuário dos Pajés, local considerado sagrado pelos habitantes da área. É lá que o grupo realiza as cerimônias religiosas.

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Nesta sexta-feira, pouco depois do entrevero entre indígenas e funcionários da empresa responsável pelas obras, o site de VEJA visitou o local onde os nativos moram – ali, a presença da imprensa geralmente é vedada. O agrupamento lembra muito pouco uma aldeia tradicional: há casas de alvenaria, barracos de madeira e construções de adobe (um tipo de tijolo cru, de argila) distribuídas de forma irregular. Cachorros e galinhas dividem o espaço com os moradores.

Jovens- Mais recentemente, o cenário foi tomado por barracas de camping trazidas por jovens que se solidarizaram com a causa. A parceria dos indígenas com os defensores dos “bons selvagens” se forjou assim que o governo anunciou a construção do novo bairro. Mas, nas últimas semanas, as retroescavadeiras avançaram e a presença dos apoiadores, jovens de classe média, aumentou.

Lá existe de tudo: rapaz branco com o rosto pintado, vestindo um agasalho da famosa grife GAP, índio com camisa da Reebok, punks, integrantes do Movimento Sem-Teto, universitários. Recém-formada em Jornalismo pela Universidade de Brasília, Taíssa Dias, 22 anos, já se acostumou com os mosquitos. “O problema é a água fria”, diz. A queixa faz sentido: a casa de João Fulniô tem aquecimento solar, mas nem sempre a energia gerada é suficiente para garantir o banho quente. A jovem argumenta que, enquanto não há uma decisão definitiva da Justiça sobre a situação do local, as construtoras não poderiam derrubar a vegetação.

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Gabriel Castro

Jovens que apoiam a causa dos índios marcam presença na aldeia
Jovens que apoiam a causa dos índios marcam presença na aldeia (VEJA)

“Estou aqui para garantir o direito à informação”, conta um fotógrafo francês, de 37 anos. Por estar em situação ilegal no Brasil, ele prefere não se identificar. O estrangeiro diz não confiar nos meios de comunicação. Por isso, registra o dia-a-dia da tribo e publica as imagens na internet. O francês é casado com uma antropóloga brasileira, que se mostra indignada com quem questiona a pureza dos índios do Noroeste.

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“Essa ideia de que índio é determinado por sangue é uma falácia”, teoriza. “Índio é quem se identifica como índio e é reconhecido como tal pela própria cultura”. A antropóloga afirma que prefere não se identificar por causa da “criminalização dos movimentos sociais”.

O advogado Gilson Santos se ofereceu para representar o grupo na Justiça. Ele garante que, embora ocupem um terreno restrito, os indígenas precisam de 50 hectares para sua sobrevivência. E eles caçam? “De certa forma, não”, afirma Gilson. Não caçam. Nem pescam, porque não existem rios na região. O pouco que plantam não é suficiente para sobreviverem. Um dos únicos moradores com emprego fixo é Santxiê Fulniô, o cacique, que trabalha na Funai. Por isso, os indígenas sobrevivem de doações.

Noroeste: prédios vão, aos poucos, substituindo a vegetação
Noroeste: prédios vão, aos poucos, substituindo a vegetação (VEJA)
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Convívio – Embora mantenham algumas tradições, como o uso da língua e a prática de rituais, os índios da capital são integrados à civilização. Gilberto Fulniô, por exemplo, é formado em Teologia. “Estudei para conhecer, mesmo”, justifica. “Não sou de nenhuma religião”. Gilberto agora pretende se matricular num curso de Pedagogia. Ele é natural de Pernambuco – estado onde se concentram os Fulniôs. Depois de ouvir um pedido para que posasse para uma fotografia na entrada da casa de cimento em que dorme, o teólogo pediu que o repórter esperasse alguns instantes: “Vou ali pegar o cocar.”

As mulheres são raras no ajuntamento: as esposas dos indígenas voltaram para a terra-natal. Levaram consigo as crianças. Durante o tempo em que a reportagem de VEJA esteve na aldeia – antes de ser convidada a se retirar por João Fulniô – nenhum idoso foi visto. Mais do que uma comunidade, a vila dos indígenas se transformou num ponto de passagem para nativos de outras etnias. Apenas o cacique Santxiê está no local desde os primeiros anos. A diversidade de origens não atrapalha o convívio, garantem os moradores da comunidade: “Somos todos parentes”, explica Daniel Terena, que veio do Mato Grosso do Sul.

Polícia – Escalada para evitar um conflito entre a construtora e os manifestantes, a Polícia Militar tenta acalmar os ânimos dos indígenas. “Não queremos nem colocar a mão nos índios”, afirma o coronel Cléber Lacerda, que comandou a operação desta sexta-feira. Ao todo, 130 homens foram deslocados para o local. E até um helicóptero chegou a ser acionado. Mas os soldados se limitam a revistar os jovens entusiastas dos nativos. Apenas a Polícia Federal tem autonomia para lidar com os indígenas. Contudo, como ainda há uma disputa judicial sobre a terra, a corporação prefere não aparecer por lá. Já os aliados dos indígenas não têm tido vida fácil: nesta quinta-feira, 14 deles foram presos ao tentar impedir o trabalho da construtora.

Apesar de reivindicar uma área de 50 hectares, os índios do Noroeste só conseguiram garantir a preservação do trecho de 4,6 hectares onde estão as casas dos nativos. É pouco provável que eles consigam o que querem, até porque as máquinas continuam avançando. Os futuros moradores do Noroeste devem viver uma situação insólita: em plena capital do país, um centro urbano de mais de 2 milhões de habitantes, terão como vizinhos 50 indígenas de penacho e cocar.

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