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Vítimas de Suzano, Brumadinho e da Boate Kiss: a dor do trauma

Sobreviventes falam a VEJA sobre o peso que as respectivas tragédias ainda têm no seu cotidiano

Por Sabrina Brito Atualizado em 6 mar 2020, 11h30 - Publicado em 6 mar 2020, 06h00

São dias para esquecer (a memória dói ao recordá-los) e para lembrar (como advertência para que nada parecido volte a ocorrer). Tome-se o 13 de março de 2019, por exemplo. Na manhã daquela quarta-feira, Guilherme Taucci Monteiro, de 17 anos, e Luiz Henrique de Castro, de 25 anos, entraram na Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano, na região metropolitana de São Paulo, e mataram a tiros oito pessoas. Na sequência, Guilherme disparou contra Luiz Henrique, assassinando-o, e depois tirou a própria vida. O massacre, como não poderia ser diferente, abalou todo o país – que gostaria de apagá-lo, mas, ao mesmo tempo, sabe que suas lições são fundamentais. Para os sobreviventes de tragédias assim, no entanto, é particularmente mais difícil que o esquecimento supere a lembrança. O nome disso, claro, é trauma.

Rhyllary Barbosa, hoje com 16 anos, estava presente na Raul Brasil quando as balas começaram a pôr fim no futuro de cada um de suas vítimas. Ela chegou até mesmo a lutar, corpo a corpo, com um dos agressores, usando seu conhecimento de técnicas de jiu-jitsu, a fim de se desvencilhar do criminoso. Ilesa, Rhyllary foi a responsável por abrir o portão da escola — que havia sido fechado pelos assassinos –, permitindo a fuga de dezenas de seus colegas.

Celebrada como heroína, a jovem afirma que, de fato, na hora, não pensou nas consequências do que estava fazendo. O reconhecimento público e interno da importância de sua ação não fizeram com que o episódio fosse necessariamente superado de maneira satisfatória. “Não me sinto segura em nenhum lugar”, relata a estudante. “Basta uma olhada para o portão da nova escola, por exemplo, para pensar como seria fácil para alguém, hoje, com de más intenções, invadir o local pulando por cima do muro”.

Rhyllary começou a fazer terapia após a tragédia, porém o tratamento não funcionou: a jovem tinha vergonha de falar sobre suas preocupações, que julga “ilógicas”, com receio de parecer insana.

Com ou sem atendimento psicológico, o certo é que sobreviventes de situações terríveis como o massacre de Suzano precisam ter válvulas de escape. No caso de Rhyllary, um certo alento veio do esporte. A prática do jiu-jitsu, que já era uma paixão antes da tragédia, se tornou mais importante do que nunca.

“Em cima do tatame, sinto que estou no meu lugar”, conta ela. “Posso refletir, aprender, ficar em paz.” O apego à luta é ainda mais intenso porque Rhyllary atribui ao jiu-jítsu o fato de estar viva.

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Apesar da ajuda algo terapêutica que lhe emana do tatame, é impossível falar em uma recuperação significativa, o que é comum com pacientes traumatizados. “Não melhorei em comparação a como me sentia no dia seguinte ao massacre”, relata a estudante. “Eu me sinto igual: o mesmo medo a cada barulho, a cada susto.”

Rhyllary Barbosa, sobrevivente do massacre de Suzano (Kaio Silva/VEJA)

Do ponto de vista médico, o que tem acometido Rhyllary podem ser sintomas do chamado transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), o qual costuma resultar de experiências que afetaram fortemente o indivíduo. Nos tiroteios em massa, como o que ocorreu em Suzano, 28% das testemunhas tendem a desenvolver o problema, de acordo com o Centro Nacional para TEPT dos Estados Unidos.

“Eventos traumáticos ativam a nossa resposta de sobrevivência, que é inerente ao ser humano e controlada pelo sistema nervoso. Em condições regulares, o corpo volta ao normal assim que a ameaça se afasta, e as sensações de equilíbrio e calma retornam”, explicou a VEJA a psicóloga britânica Claudia Herbert, especialista em trauma e membro da Sociedade Britânica de Psicologia. “Contudo, quando o trauma é severo, a resposta natural do organismo pode não cessar. O corpo é inundado por altos níveis de hormônios ligados ao estresse, o que mantém o organismo em uma sensação permanente de perigo”, detalha Claudia.

É importante salientar, todavia, que nem todo trauma causa transtorno de estresse pós-traumático: apenas cerca de 20% das mulheres e 8% dos homens que passam por eventos graves desenvolvem TEPT. Quanto mais aterradora a experiência, maior a chance de ter o transtorno.

Infelizmente, tais experiências vêm se repetindo no Brasil. Menos de dois meses antes do massacre de Suzano, no dia 25 de janeiro de 2019, a vida das famílias de mais de 200 pessoas mudaria para sempre. Naquela data, o rompimento de uma barragem na cidade mineira de Brumadinho destruiu casas, estabelecimentos comerciais e carros, afogados em um mar de lama que levou consigo 270 vidas.

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Uma delas foi a de Robert, filho de 19 anos da empregada doméstica Iolanda de Oliveira da Silva. Assim que o corpo de seu filho foi encontrado, uma semana após o desastre, ela decidiu se distanciar do local da tragédia: mudou de cidade. “Só não fui embora antes disso porque ficava voltando até a lama, procurando pelo Robert”, contou Iolanda a VEJA.

Depois do desastre, a doméstica, de 49 anos, desenvolveu ansiedade e depressão, para os quais toma remédio desde então. Entretanto, segundo ela, os medicamentos não fazem muita diferença. “Até hoje sofro muito. Sem mais nem menos, fico agressiva, sinto dor no corpo. Tenho medo de mim mesma. Minha roupa fica molhada de suor, começo a chorar do nada”, relatou. ”Virou tudo lama, tristeza, desgosto”.

Esse sentimento melancólico e de pessimismo é muito difícil de contornar. Segundo a médica americana Shaili Jain, da Universidade Stanford (EUA), especialista no assunto, o trauma representa a violação de tudo aquilo que consideramos “bom e sagrado”. Com isso, a sensação do indivíduo traumatizado é a de total desamparo, de sofrimento, de uma dor que nunca passará.

Em Sarzedo, para onde se mudou, Iolanda vive em frente a outra barragem. E o trauma não a deixa esquecer disso: “Ouço trovões e já penso na barragem caindo. Fecho a casa e fico desesperada, achando que vai acontecer de novo.”

Sem trabalhar desde o dia da tragédia, Iolanda e seus dois outros filhos vivem do dinheiro da indenização que lhes foi pago pela Vale, mineradora responsável pela barragem que caiu. O montante era de R$ 100 mil, pagos a 277 famílias de vítimas. Segundo a empresa, quase 3 bilhões de reais foram pagos em indenizações, “doações” e outros tipos de auxílio.

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Iolanda de Oliveira da Silva e Robert, seu filho de 19 anos que faleceu em Brumadinho (Arquivos Pessoais/Reprodução)

Ao contrário do que se poderia supor, as feridas deixadas por horas de horror não se mantêm abertas apenas por períodos mais ou menos curtos, como o de um ano. Tragédias vividas há um tempo já largo podem seguir acesas, impactantes, tormentosas.

No dia 27 de janeiro de 2013, Maike Adriel dos Santos, então com 20 anos, foi festejar o aniversário de uma amiga numa balada de sua cidade, Santa Maria (RS). Era a Boate Kiss. A certa altura da comemoração, quando se afastou do palco em busca de outros conhecidos, ele notou uma espessa fumaça no teto, e ouviu os gritos de “fogo!’’. Pegou a mão de uma amiga, que se segurou na de outro colega e tomaram o rumo da saída.

A luz caiu, deixando as mais de 700 pessoas que se encontravam na casa noturna em um breu total. O pânico tomou conta de todos. As pessoas se empurravam e pisoteavam quem caía à sua frente na tentativa de chegarem até a porta – que estava fechada. Com a temperatura subindo e a fumaça no ar, Maike desmaiou. Ao voltar a si, estava do lado de fora da boate, praticamente sem ferimentos: alguém o havia salvado.

O jovem foi levado ao hospital, onde passou 28 dias. Fez algumas sessões de acompanhamento psiquiátrico, mas preferiu parar: não gostou da ideia de tomar ainda mais remédios do que já exigiam as suas sequelas físicas. Escolheu outra forma de lidar com o incidente. “O que me ajudou foi conhecer mais gente que sobreviveu e trocar experiências com pessoas na mesma situação. Conheci e conversei com alguns familiares dos amigos que perdi também. Foi o meu tratamento psicológico, de certa forma”, declarou ele a VEJA.

Golpes de sorte, no entanto, foram raros naquela noite, que terminou com 242 mortos. Entre eles, todas as pessoas que haviam ido com Maike à Kiss, com a exceção de uma única amiga.

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Mesmo tendo encontrado um modo de seguir em frente, o jovem, assim como grande parte ds sobreviventes de tragédias, não conseguiu se livrar completamente daquele fatídico 27 de janeiro. “Entro em locais fechados tentando reconhecer as saídas, pensar em rotas de escape. Desenvolvi um lado que sempre vai desconfiar do local por onde sair, do extintor, da quantidade de pessoas para escapar”, comentou ele.

Certos odores e situações o transportam de volta para aquele momento de desespero, e novamente ele se vê angustiado. O coração bate rápido, o cheiro de fogo lhe preenche as narinas, o suor escorre pelas costas. Por que Maike não consegue superar a tragédia?

“O tempo, por si só, não ajuda uma pessoa que tenha desenvolvido TEPT, já que esse transtorno causa mudanças neurofisiológicas no corpo que não passam sozinhas. Pode parecer que pessoas afetadas por traumas aceitaram o que aconteceu e superaram, porém não é bem assim”, diz Claudia Herbert.

Mesmo ainda sentindo o trauma na pele, Maike se considera muito mais distante da boate Kiss do que há alguns anos. Está namorando, trabalha em uma gráfica e consegue até mesmo frequentar baladas — não sem um pouco de medo, é evidente. “Alguns resquícios daquele dia persistem; contudo, hoje sou feliz”.

Maike Adriel dos Santos, poucos dias depois do incêndio na Boate Kiss (Nabor Goulart/Agência Freelancer/VEJA)

Sete dos réus envolvidos na tragédia da boate Kiss, que estava superlotada e apresentava irregularidades, não foram a julgamento. As famílias de vítimas e os sobreviventes não receberam nenhum tipo de indenização.

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Levar a vida depois de eventos traumáticos é, naturalmente, um fardo. Não à toa, pessoas traumatizadas costumam apresentar maiores chances de cometer suicídio.

Um estudo com quase 6 mil habitantes dos Estados Unidos apontou que, entre indivíduos que foram estuprados (experiência claramente traumática), 22% já tentaram tirar a própria vida. Além disso, 23% de quem foi fisicamente agredido declarou ter tentado, em algum momento, cometer suicídio.

Para Shaili Jain, a melhor maneira de evitar que a situação chegue a esse ponto é a terapia cognitiva comportamental. “Os ingredientes mágicos são os exercícios de exposição, a reestruturação cognitiva, a educação sobre o trauma ocorrido e a administração de ansiedade por meio de exercícios e relaxamento”, afirmou ela.

Contudo, falar sobre os piores momentos da sua vida pode ser uma tarefa árdua demais para alguém traumatizado. Por isso, explicou a médica, os índices de desistência das terapias psicológicas nesses casos costumam ser altos. “Alguns sobreviventes preferem abordar o trauma pelo lado físico, e partem para atividades como yoga, mindfulness e acupuntura.” Mas, segundo a especialista, tal tipo de abordagem não é tão comprovadamente útil para os traumatizados quanto a terapia cognitiva pode ser. Remédios, completou ela, aliviam sintomas de ansiedade e depressão em 60% dos pacientes.

No Brasil, a ajuda oferecida a indivíduos traumatizados é falha, uma vez que frequentemente eles são enquadrados dentro do espectro dos portadores de transtornos mentais. São escassas as ações governamentais nessa frente. Uma evidência desse quadro preocupante é o investimento feito no país na área da saúde mental. Enquanto a média mundial de gastos no setor é de 2,8% do total investido em saúde, a previsão orçamentária brasileira para a aplicação em saúde mental no ano passado foi de somente 1,6% do montante gasto com a área.

O problema, então, passa a ser, também de saúde pública, talvez por envolver o famigerado tabu das doenças mentais. No entanto, enquanto o Brasil não estiver pronto para prevenir tragédias, e não aprender a lidar com suas vítimas, a carga dos traumas continuará sendo grande demais para ser suportada apenas pelos traumatizado, suas famílias e amigos. O esquecimento – vale dizer, a superação – seguirá sucumbindo à dor da lembrança.

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