Como as democracias sobrevivem?
Apoio de Bolsonaro à tentativa de golpe nos EUA deveria ser suficiente para acordar as oposições
No best-seller “Como as Democracias Morrem”, publicado logo depois da vitória da eleição de Donald Trump, os professores Steven Levitsky e Daniel Ziblatt descrevem o ambiente de erosão institucional que pode levar ao rompimento das regras democráticas. Sobre os EUA, eles previram: “Há, sim, razões para alarme. Não apenas os norte-americanos elegeram um demagogo em 2016, mas o fizeram numa época em que as normas que costumavam proteger a nossa democracia já estavam perdendo suas amarras. Contudo, se as experiências de outros países nos ensinam que a polarização é capaz de matar as democracias, elas nos ensinam também que esse colapso não é inevitável nem irreversível”.
A tentativa trumpista de um golpe de Estado na quarta-feira, 6, mostra que os alertas de Levitsky e Ziblatt estavam corretos. Os EUA resistiram à tentativa de se repetir a marcha sobre Roma de 1922, mas talvez outros países não tenham a mesma sorte. A pergunta natural depois dos acontecimentos de Washington é ‘como as democracias sobrevivem?”.
Os compromissos democráticos de Jair Bolsonaro são tão reais quanto os boitatás. O presidente brasileiro foi o único líder mundial a justificar a invasão do Capitólio e ameaçar algo similar no Brasil, caso o Congresso não aprove um projeto de impressão do voto na urna eletrônica. Disse Bolsonaro:
“Se nós não tivermos o voto impresso em 22, uma maneira de auditar o voto, nós vamos ter problema pior que os Estados Unidos. Então, lá, o pessoal votou e potencializaram o voto pelos correios por causa da tal da pandemia, e houve gente lá que votou três, quatro vezes, mortos que votaram. Foi uma festa lá. Ninguém pode negar isso daí”.
O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, também defendeu a revolta dos trumpistas: “O direito do povo de exigir o bom funcionamento de suas instituições é sagrado. Que os fatos de Washington não sirvam de pretexto, nos EUA ou em qualquer país, para colocar qualquer instituição acima do escrutínio popular”.
A fixação de Bolsonaro com a possibilidade de fraudes nas urnas eletrônicas tem mais de dez anos, embora ele nunca tenha apresentado qualquer prova. A suspeita funciona como um dog whistle, o apito para cães, uma mensagem subliminar para acentuar as teorias de conspiração sobre como o establishment e o deep state tentam impedi-lo de governar.
Se Arthur Lira for eleito presidente da Câmara, é certo que irá a votação o projeto da deputada Bia Kicis na qual cada urna eletrônica terá acoplado uma impressora para emitir uma cópia de cada voto. Pelo projeto, depois de digitar sua preferência, o eleitor vai conferir se a cédula impressa corresponde ao voto digitado e depositar a cópia em uma urna. Se houver alguma suspeita sobre os resultados, as cédulas físicas serão contadas. A emenda não detalha, mas dá a entender que se houver divergência, a contagem das cédulas físicas terá precedência sobre a urna eletrônica.
O debate é uma armadilha. Bolsonaro tem zero preocupação com a lisura das urnas, mas ele precisa ter nervos expostos que ele possa tocar para agitar a sua turba. A possível fraude eleitoral é um desses nervos.
Outro apito para cães é a defesa da liberação do porte e uso de armas como um símbolo de liberdade. Na agora histórica reunião ministerial de abril passado, Bolsonaro cobrou do então ministro Sergio Moro. Se referindo aos governadores e prefeitos que estavam impondo quarentena, o presidente disse: “O que esses filha de uma égua quer é a nossa liberdade. Olha, como é fácil impor uma ditadura no Brasil. Como é fácil! O povo tá dentro de casa. Por isso que eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme! Que é a garantia que não vai ter um filho da puta aparecer pra impor uma ditadura aqui! Que é fácil impor uma ditadura! Facílimo! Um bosta de um prefeito faz um bosta de um decreto, algema, e deixa todo mundo dentro de casa. Se tivesse armado, ia pra rua. E se eu fosse ditador, né? Eu queria desarmar a população, como todos fizeram no passado quando queriam, antes de impor a sua respectiva ditadura. Eu quero todo mundo armado”.
Assim como nos EUA, o Bolsonarismo também tenta relacionar a oposição à pedofilia. Como candidato, Bolsonaro usou essa tática com maestria ao relacionar Fernando Haddad com o inexistente kit gay. No ano passado, afirmou sem nenhuma prova que “enquanto a esquerda pretende legalizara pedofilia, estamos propondo o aumento das penas”. É cópia da teoria de conspiração que deu origem ao QAnon.
Bolsonaro semeia essas teorias para reforçar a narrativa de que ele, e apenas ele, é capaz de enfrentar um establishment corrompido moralmente. Os adversários não são apenas antagonistas, são inimigos. São eles – o STF, Rodrigo Maia, a imprensa, o PT, João Doria, etc. – que o impedem de governar com liberdade e que tentam a todo custo boicotar seu governo.
Um exemplo dessa tática foi dado na terça-feira, 5, quando o presidente confessou a um militante: “O Brasil está quebrado. Eu não consigo fazer nada”. O presidente disse que pretendia aumentar o número de isentos da imposto de renda, mas que não conseguiu porque “teve esse vírus, potencializado pela mídia que nós temos”. Ele não tem culpa de nada.
O roteiro da narrativa de Bolsonaro segue o mesmo manual de Trump, Viktor Órban e Matteo Salvini. O que pode ser diferente é a reação das oposições. As difíceis negociações para a formação de uma aliança para a eleição para a presidência da Câmara comprovam que parte considerável do partidos de oposição não enxerga Bolsonaro como um risco à democracia. Outra parte acredita que apenas os puros subirão ao reino dos céus.
Eles estão errados. Bolsonaro teria colocado na cadeia vários ministros do STF no meio do ano caso tivesse o apoio do Exército. Não teve e recuou. Agora tenta dominar o Congresso pela via padrão da troca de votos por cargos e emendas, mas é óbvio que irá impor a sua agenda legislativa caso o seu candidato, Arthur Lira, seja eleito.
Nas condições atuais, não é seguro dizer que Bolsonaro aceitaria uma eventual derrota em 2022. Vai depender de como as oposições delimitarem o espaço de atuação dele até lá. Apoio de Bolsonaro à tentativa de golpe nos EUA deveria ser suficiente para acordar as oposições. O que se passou em Washington nesta semana pode, sim, ser uma prévia de Brasília em 2022.