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Por Kelly Miyashiro
Críticas e análises sobre o universo da televisão e das plataformas de streaming
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Com Deus negro e humano, série ‘Lúcifer’ alinha religião aos dias atuais

Divindade é o novo personagem da série da Netflix, que, assim como em tantas outras produções na ficção, leva o rosto de uma minoria social

Por Tamara Nassif Atualizado em 2 jun 2021, 16h30 - Publicado em 2 jun 2021, 12h41

Ele até parece uma pessoa comum. De barba grisalha meticulosamente feita, o personagem de Dennis Haysbert em Lúcifer veste um avental para fazer drinks e solta a voz em I Dreamed a Dream, canção do musical Os Miseráveis, enquanto tenta se reconciliar com os filhos. O homem, porém, não é só uma “pessoa”: o novo personagem da série é ninguém mais, ninguém menos que Deus em carne e osso. Sua prole, em especial os anjos Lúcifer (Tom Ellis) e Amenadiel (D. B. Woodside), está convencida de que o Pai Eterno é um pai ausente que não soube amá-los. Assim como boa parte da trama da Netflix, a narrativa bíblica é adaptada (e muito) para se encaixar nos dias e valores de hoje, tentando humanizar seus personagens não-humanos – não à toa, Deus é negro e usa chinelos com meia.

Na segunda parte da quinta temporada, que chegou à plataforma na última semana e já crava um sólido posto entre as 10 produções mais vistas, a caneta da desmistificação chega no Todo-Poderoso, que, forte demais para a Terra, perde o controle dos próprios poderes. “Aí está a ira do Velho Testamento”, ironiza Lúcifer quando Deus faz trovejar durante uma discussão. Em outra ocasião, Ele explode um detetive quando estende a mão para cumprimentá-lo. Decidido a ficar no mundo dos mortais para melhorar seu relacionamento com os filhos angélicos, opta por guardar os poderes e se tornar humano – e, a partir daí, tem experiências tipicamente mundanas, de ter que lidar com uma bexiga apertada a noites de pura bebedeira. Uma visão de Deus bêbado pode não agradar a todos os fiéis que a Ele prestam reverência, mas faz parte de um filão da ficção que vem ganhando cada vez mais terreno, quer seja na TV, quer seja no cinema: o de aproximar a religião do mundo real e, principalmente, das discussões sociais que irrompem diariamente por aqui. 

Quando Dogma, filme de 1999 com Ben Affleck e Matt Damon, estreou, foi grande a gritaria. Na trama dos dois anjos banidos do Paraíso, o mandante da expulsão também foi Deus em pessoa – só que personificado pela cantora Alanis Morissette. Não bastasse a ousadia de verter Deus em mulher, tratava-se de uma mulher roqueira, gênero musical “do diabo”, do qual seus representantes, no imaginário popular, não têm a menor chance de chegar aos Céus. No drama A Cabana (2017), o choque foi menor. Deus é representado pela atriz Octavia Spencer: mulher negra, cuja bondade ajuda Mack Phillips (Sam Worthington) a superar uma tragédia familiar. Porém, um detalhe: ela avisa que Deus se manifesta como melhor se encaixa na necessidade de cada pessoa — uma maneira de chocar menos os que não admitem a figura divina sem ser num corpo masculino. Na série de televisão Good Omens, disponível no Amazon Prime Video, o Todo-Poderoso não aparece, mas fala bastante. A voz é de Francis McDormand, recentemente laureada com o Oscar de melhor atriz por Nomadland. No filme Êxodo: Deuses e Reis (2014), a divindade é representada por uma criança, um menino carrancudo que age de formas questionáveis — retrato que levou a um boicote ao longa.

A atriz Octavia Spencer como Deus em 'A Cabana', de 2017.
A atriz Octavia Spencer como Deus em ‘A Cabana’, de 2017 (./Divulgação)

Não são escolhas por acaso: mulheres e pessoas não-brancas fazem parte das chamadas “minorias”, que, apesar de numerosas, costumam ser sub-representadas na ficção. Eis aí, então, a provocação: retratar Deus, Todo-Poderoso, com o rosto de uma minoria subverte os papéis sociais aos quais estamos acostumados. Caso andasse despretensiosamente pela rua, da diabólica Los Angeles de Lúcifer ao exílio em Wisconsin, de Dogma, os deuses da ficção não só poderiam passar despercebidos, como também poderiam entrar para a lista diária de crimes de racismo e assédio.

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Alanis Morissette como Deus no filme 'Dogma' (1999) -
Alanis Morissette como Deus no filme ‘Dogma’ (1999) – (//Divulgação)

As múltiplas faces divinas a Ele atribuídas dão corpo a outro questionamento instigador: será que Deus é realmente homem, branco, de olhos azuis e cabelos encaracolados, como desenha uma velha narrativa cristã? Ao ir na contramão do normativo, a ficção abre campo para que se discuta até que ponto é importante matutar sobre a forma que Deus assume, e aproxima a divindade do mundo real, ao ter tantos tipos de faces quanto se é possível contar – o que não é lá algo tão novo assim. No rico universo de Game of Thrones, por exemplo, um dos deuses mais intrigantes é o Deus de Muitas Faces (ou, alternativamente, “Deus da Morte”), que pode assumir qualquer rosto, a qualquer momento. Na vida real, o politeísta Egito Antigo tinha suas divindades como metade humanas, metade animais.  

São reflexões que, ancoradas no campo do inventado, podem repercutir no real, onde crimes movidos por intolerância religiosa são constantes no noticiário. Se Deus está nos detalhes e escreve certo por linhas tortas, é nos roteiros mirabolantes da ficção que Ele pode fazer a festa. No caso da série Lúcifer, literalmente. 

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